domingo, 20 de junho de 2021

Luiz Sérgio Henriques* - América Latina, revolução e democracia

O Estado de S. Paulo

A dialética democrática desconhece a dominação bruta de um grupo sobre os demais

O Brasil dos nossos dias não é propriamente o ponto de observação mais adequado para avaliar processos políticos latino-americanos, tão surpreendentes e imprevisíveis quanto os que nós mesmos temos experimentado na carne. O redemoinho nos é comum e arrasta todos, fazendo, em geral, os raciocínios ficarem turvados pelas paixões da hora.

No País oficial as avaliações obedecem a um automatismo indigente. Diante do protagonismo de qualquer setor da esquerda latino-americana, em si tão diversa e fragmentada, as vozes dos nossos governantes se limitam a lamentar a “perda” de tal ou qual nação vizinha para a causa das “liberdades”, como se os antolhos da guerra fria devessem nos envesgar indefinidamente. Sintomáticos o uso e o abuso da palavra “comunismo”, como se se tratasse de escolher “modos de produção” a cada rodada eleitoral, e não, mais singela e concretamente, barrar os nacionalismos autoritários de vertentes às vezes opostas que nos ameaçam.

Os representantes do País não oficial nem sempre estão atentos ao que se passa fora das nossas fronteiras, ainda que os eventos pipoquem ao redor. Proverbiais, a respeito de temas externos, o silêncio e a desatenção de forças moderadas ou de centro, pouco afeitas a tratar do “nexo nacional-internacional” como questão de primeira ordem. Partidos desse campo não costumam ter “política externa” e, uma vez no governo, em regra são pouco inovadores.

Celso Lafer* - FHC aos 90

O Estado de S. Paulo

Sua preocupação hoje é com a onda regressiva que põe em questão a vigência da democracia

Fernando Henrique Cardoso chega aos bem temperados (como o cravo de Bach) 90 anos na plenitude das qualidades que dele fizeram, ao mesmo tempo, um intelectual de envergadura e um grande homem público. Essas vertentes se entrelaçam criativamente. Combinam, numa dialética de mútua implicação e complementaridade, a “paixão por entender, a chama que move os intelectuais”, e a “compulsão por fazer, o ethos da política”.

Essas suas palavras nas recém-publicadas Memórias esclarecem a perspectiva organizadora da sua densa caminhada. Esta levou um intelectual de grande talento, que obteve com sua obra e seu magistério reconhecida presença no mundo universitário do País e do exterior, a projetar-se com influência no espaço público e depois converter-se em ator político de primeira plana.

O sentido de direção da sua compulsão para fazer muito deve à sua paixão intelectual por entender. Nas suas obras, pesquisas e contínuas leituras empenhou-se “em desenvolver uma ação intelectual voltada para entender e mudar o Brasil”. Raciocinou movido pela curiosidade do sociólogo, interessado no que vem vindo e está em andamento.

Essa forma mentis originária se ampliou com sua experiência de intelectual no exterior. No Chile, deu-se conta da relevância da América Latina. Na França e nos Estados Unidos, ampliou sua capacidade de orientar-se no mundo.

Merval Pereira - O recado dos mortos

O Globo

Quantos milhares de mortos mais teremos que enterrar antes que nos convençamos de que um governo que, por incúria ou projeto, deixou morrer mais de 500 mil pessoas, não pode continuar tendo o comando do país em meio a essa verdadeira guerra que estamos perdendo por falta de comando? Em pouco mais de um ano, o Brasil perdeu para a COVID-19 o equivalente ao número de vidas que perde para violência a cada dez anos, um dos nossos maiores problemas sociais.

Somos também o segundo país, atrás só do Peru, com maior número de mortes por milhão entre os com população acima de dez milhões de habitantes, o que tira da classificação distorções por questão de escala. Mas corremos o risco de passar o número de mortos dos Estados Unidos, que tem uma população maior.

Um gráfico com base nos dados do Our World in Data mostra que a vacinação começou em 15 de dezembro de 2020 em países como Israel, Canadá, Rússia e China. O Brasil só começou a vacinar quando Estados Unidos e China já tinham vacinado cerca de 30 milhões de doses cada um, Reino Unido já alcançava 10 milhões  e Israel e Índia chegavam a cerca de 5 milhões de doses.

Míriam Leitão - A nossa dor além da conta

O Globo

Meio milhão de mortos. É o que temos registrado. Um número imenso, inconcebível, mas que era previsível diante dos erros do governo. Caminhamos para a morte, dolorosamente, sem saber quem entre nós será atingido na próxima semana, no próximo dia, na próxima hora. Nós, os sobreviventes, carregamos dores e sequelas de uma impiedosa mortandade. Sim, Bolsonaro é culpado, e essa não é uma frase política, é a simples constatação diante de abundantes fatos produzidos diariamente por ele mesmo, o mais irresponsável dos governantes que o Brasil já teve. Na última quinta-feira, na live em que mente sistematicamente, Bolsonaro disse que quem pegou o vírus está mais imunizado do que quem tomou a vacina. Essa é mais uma mentira mortal. As mentiras do presidente matam.

Não foi Bolsonaro que inventou a pandemia, mas é ele que tem se esforçado diariamente pela disseminação do vírus. Bolsonaro pôs todos os seus mesquinhos interesses à frente da vida. Sabotou os esforços dos que tentam proteger os brasileiros, atacou governadores, alimentou a cizânia, espalhou mentiras, estimulou aglomerações, ignorou fornecedores de vacinas, exibiu desprezo pelos que sofrem e correu atrás de tudo o que não funciona, da cloroquina ao spray nasal.

Bernardo Mello Franco - Crime sem castigo: Bolsonaro e os 500 mil mortos

O Globo

O Brasil atingiu as 500 mil mortes pelo coronavírus. A pandemia devastou o país com a cumplicidade de Jair Bolsonaro. O presidente sabotou as medidas de distanciamento, boicotou a compra de vacinas e segue em cruzada contra o uso de máscaras.

A CPI da Covid já reuniu provas de que a irresponsabilidade foi calculada. O capitão apostou na estratégia da “imunidade de rebanho”. Atuou para acelerar a disseminação da doença, como se isso fosse abreviar o baque na economia e facilitar sua reeleição.

Indiferente à tragédia, ele torra dinheiro público para fazer campanha antecipada. Na sexta, transformou uma visita ao Pará em comício, com transmissão ao vivo na TV estatal.

O presidente tem razões para confiar na impunidade. As instituições se acoelharam diante de suas afrontas. A Câmara já recebeu mais de uma centena de pedidos de impeachment, mas nenhum chegou a sair da gaveta.

“No momento, parece muito provável que Bolsonaro dispute o segundo turno em 2022, e nada provável que ele seja defenestrado do Planalto por seus crimes de responsabilidade”, resume o professor Rafael Mafei, da Faculdade de Direito da USP.

No epílogo de “Como remover um presidente” (Zahar, 378 págs.), ele discute por que o capitão não enfrenta o mesmo processo que derrubou Fernando Collor e Dilma Rosuseff.

Dorrit Harazim - ‘Isto tem que acabar’

O Globo

Lee Bollinger é o mais longevo presidente da centenária Universidade Columbia, em Nova York, fundada muito antes de os Estados Unidos terem um 4 de Julho para comemorar a Independência. Ocupante do cargo há duas décadas, Bollinger, que não é de falar abobrinha, define assim a função da instituição: “Uma universidade não consegue sobreviver numa sociedade que não leva a sério os elementos básicos da vida cívica — o respeito à verdade, o respeito à razão como meio de busca da verdade e o compromisso com o princípio fundamental da igualdade humana”. Se substituirmos “universidade” por “país” ou “imprensa independente”, a frase também vale.

Steve Bannon, o trevoso conselheiro do ex-presidente Donald Trump e inspiração para a extrema-direita mundial, baseou sua estratégia na identificação do inimigo a bater — não a oposição democrata, que Bannon desdenhava e considerava peso leve. “A verdadeira oposição é a mídia. E a melhor forma de lidar com ela é inundá-la de merda”, sustentava o guru, em citação tirada do livro “Hoax” (embuste), do jornalista Brian Stelter.

Nos Estados Unidos de Trump, a tática deu certo até a 25ª hora de seus quatro anos na Casa Branca. Cada nova afirmação deliberadamente falsa do presidente obrigava a mídia a correr atrás, apontar a desinformação, retificá-la às pressas, fazer do jornalismo um cansativo exercício de fact-checking que, por sua vez, adquiria vida própria, também manipulável. Fatos e decência se tornaram divisores ideológicos, partidários, destruíram ou deixaram destruir a confiança nas Cortes e na ciência, nas eleições e nas instituições. Até hoje, passados sete meses desde o pleito de 2020, 75% dos eleitores republicanos acreditam na versão trumpista de fraude eleitoral.

Elio Gaspari - Em busca da civilização perdida

O Globo / Folha de S. Paulo

Se não bastasse a pandemia, vive-se a ameaça de uma crise no fornecimento de energia

Se não bastasse a pandemia, vive-se a ameaça de uma crise no fornecimento de energia. E se isso fosse pouco, o projeto de privatização da Eletrobras foi minado pelos jabutis que os maganos enfiaram na legislação.

Tamanha confusão produzida por uma base política voraz e pela falta de rumo do governo poderá ser melhor entendida por quem se dispuser a atravessar as 368 páginas de “Curto-circuito: Quando o Brasil quase ficou às escuras”, dos jornalistas Roberto Rockmann e Lucio Mattos.

Eles contam duas histórias. O tema central é o “apagão” de 2001, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso enfrentou a falta de água nos reservatórios. O pano de fundo é a mistura de interesses, inépcias e empulhações que provocaram a crise e desembocaram na girafa em que se transformou o sonho tucano de privatização das estatais elétricas.

Prometiam um modelo no qual a geração seria privatizada, haveria disputa pelo fornecimento e as pessoas poderiam escolher de quem comprariam energia. Não aconteceu nem uma coisa nem outra, as tarifas subiram e a crise hídrica voltou.

Luiz Carlos Azedo - Poderes da radicalização

Correio Braziliense / Estado de Minas

O poder não existe apenas no Estado e na figura de Bolsonaro. Também está disseminado na sociedade, por meio de um “micropoder” que se irradia, inclusive na família

A polarização política em curso no país, protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se deslocou do terreno das instituições políticas para a sociedade, antes mesmo de se iniciar o processo eleitoral propriamente dito, quando isso seria mais natural. É uma questão que merece atenção redobrada, porque diz respeito à convivência entre as pessoas, às vezes, em seu próprio ambiente familiar, o que gera um clima de intolerância e ódio muito perigoso na vida social.

Tradicionalmente, toda ou qualquer análise política parte da ideia de que o seu locus privilegiado é o Estado, onde se exerce o poder. Manter ou conquistar o poder é a chave para a polarização política. Numa democracia representativa, entre uma eleição e outra, essa disputa ocorre no âmbito da relação entre os partidos e as instituições; entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; na relação entre os entes federados – governadores e prefeitos; e no âmbito do Congresso Nacional: Câmara e Senado. Ocorre que uma polarização protagonizada por uma força extremista antissistêmica instalada no Poder, como é caso do governo Bolsonaro, de características bonapartistas, obviamente, rompe o equilíbrio da disputa nesses terrenos e atrai a sociedade para uma polarização
antecipada, na qual se confrontam forças a favor e contra a ordem democrática vigente.

Ricardo Noblat - Carlos Bolsonaro dá o tom da reação da direita à voz das ruas

Blog do Noblat / Metrópoles

Piedade pelos mortos da Covid-19 ficou de fora das mensagens do Zero Dois e do ministro das Comunicações do governo do seu pai

Pouco importava se as manifestações de rua contra o governo federal fossem grandes ou pequenas, pois elas seriam tratadas da mesma forma pelos devotos do presidente Jair Bolsonaro. Em um mês, foram duas, a segunda bem maior do que a primeira.

O tom da reação da direita à voz das ruas foi dado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), o Zero Dois, responsável pela comunicação do pai nas redes sociais. E ele escreveu que tudo não passou de mais um ato da esquerda a serviço de Lula.

As manifestações pediram três coisas: mais vacinas, reajuste no valor do auxílio emergencial pago aos brasileiros mais pobres, e o impeachment de Bolsonaro. Elas ocorreram no dia em que o número de mortos pela Covid bateu a triste marca de 500 mil.

George Gurgel de Oliveira* - A reunião do G7, a pandemia e o imperativo da sustentabilidade

Estamos vivendo uma situação mundial de crises econômicas, sociais e ambientais, a exemplo da crise climática, do aumento da fome, do desemprego e da falta de vacinas para as populações e países pobres do planeta, inclusive no Brasil, entre outras tragédias já no segundo ano de pandemia.

A pandemia colocou em evidência a insustentabilidade econômica, social e ambiental da sociedade contemporânea, herdeira da revolução industrial e urbana do século XVIII, aos olhos de hoje insustentável.

A partir dos anos 60, do século XX, coloca-se como nunca o imperativo de defesa e ampliação da democracia como caminho de novas relações políticas, econômicas e sociais em defesa da vida e da preservação do meio ambiente. A possibilidade desta construção alternativa ao capitalismo e a própria experiência do socialismo real, valorizando a democracia, continua nos desafiando neste século XXI, em plena pandemia, desnudando as fragilidades dos nossos sistemas político, econômico e social no Brasil e no mundo.

O confinamento social está nos proporcionando uma necessária reflexão individual e coletiva da sociedade brasileira e de toda a humanidade. Sob qual perspectiva nos colocamos durante a pandemia e a pós-pandemia? O que temos a dizer como sociedade brasileira e mundial?

Neste contexto é que devemos avaliar a recente reunião dos países mais desenvolvidos, o chamado Grupo do 7 (G7), no último 11, na Inglaterra, e os impactos das deliberações e declarações do G7 antes, durante e depois da reunião e os seus desdobramentos no cenário político e econômico mundial.

O Grupo dos Sete (G7) é o grupo dos países mais industrializados do mundo: Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido. Ainda com a representação da União Européia. Foi fundado em 1975 e faz reuniões anuais para discutir as questões urgentes do cenário internacional. Na agenda da sua última reunião predominaram as questões relacionadas a mudanças climáticas, ameaças à democracia, recuperação da economia mundial e a própria pandemia. Ainda como fato político importante destaque-se a iniciativa dos EUA e da União Européia de um possível realinhamento com a China e a Rússia, apesar de uma posição critica do G7 em relação a estes países.

Vinicius Torres Freire - Lula e os inimigos etéreos de Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Reeleição pode ser ameaçada por falta de chuva, juros no EUA e inflação

O maior adversário de Jair Bolsonaro em 2022 é, óbvio, Lula da Silva. Quem ou o quê mais? Difícil imaginar políticos ou movimentos políticos e sociais organizados que ameacem o projeto de autocrata. O que pode dificultar a reeleição são entidades abstratas, nebulosas, voláteis ou, até agora, informes politicamente: mumunhas do PIB, inflação, fome, racionamento, política monetária americana, por exemplo.

A fim de lidar com alguns desses riscos, Bolsonaro se agita para aprontar um pacote de grande, diverso, de demagogias mais ou menos pontuais e assumiu que não faz mais nada a não ser campanha.

Bruno Boghossian - A política dos 500 mil

Folha de S. Paulo

Em vez de apoiar um processo longo de imunização, Bolsonaro incentivou propagação do vírus

Quando o país chegou a 100 mil mortes por Covid-19, Jair Bolsonaro afirmou que o isolamento não funcionava e acusou a imprensa de espalhar pânico. Foi só o começo. Dias depois, ele disse que as pessoas estariam vivas "caso tivessem sido tratadas lá atrás" com cloroquina.

Era agosto de 2020. Autoridades de saúde de todo o mundo já diziam que o medicamento era ineficaz contra a Covid-19. Mesmo assim, o governo mobilizava embaixadas, as Forças Armadas e uma rede de médicos alinhados ao presidente para comprar, fabricar e distribuir o remédio.

Em cinco meses, o Brasil já contava 200 mil mortes. Bolsonaro sobrou a aposta: disse que as vacinas contra a doença não tinham segurança e que metade da população recusaria o imunizante.

Janio de Freitas Ameaça que se arma

Folha de S. Paulo

É preciso uma campanha para deter a receptividade desse movimento na Câmara

Em reforço à mais urgente de suas metas desordeiras, Jair Bolsonaro agrava a ameaça de que, se recusada a mudança, “um lado” pode “não aceitar” e “criar uma convulsão no Brasil”. Por isso ou por outro dos fatores já em curso, o Brasil, de fato, vai se fazendo propenso a uma convulsão. É uma percepção cada vez mais nítida entre os lúcidos experimentados. E cada vez mais facilitada pelo colaboracionismo da omissão generalizada.

esforço solitário do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, só ecoa por minutos. Seria o caso, no entanto, de uma campanha que detivesse a receptividade do voto impresso na Câmara, onde a fraude eleitoral tem velhos praticantes e novas tentações. Nada se move contra essa outra face, “política”, dos preparativos de Bolsonaro para suas alternativas antidemocráticas.

24 Estados têm ato anti-bolsonaro

Protestos contra Bolsonaro foram registrados também no DF e no exterior; apesar do uso generalizado de máscaras, houve aglomerações

O Estado de S. Paulo

Dezenas de milhares de pessoas participaram de manifestações contra o governo em ao menos 24 Estados, no Distrito

Federal e no exterior. Organizados por movimentos sociais, centrais sindicais e partidos de oposição, os atos pediram impeachment de Jair Bolsonaro, retomada do auxílio de R$ 600 e vacinação em massa contra covid.

Dezenas de milhares de pessoas voltaram às ruas, ontem, em manifestações críticas ao governo federal realizadas em ao menos 24 Estados e no Distrito Federal, segundo registros nas redes sociais. Organizados por movimentos sociais, centrais sindicais e partidos políticos de oposição, os atos pediram o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, a retomada do auxílio emergencial de R$ 600 e a vacinação em massa contra o novo coronavírus.

Segundo os organizadores, ocorreram atos em cerca de 400 cidades no Brasil e em outros 17 países – o que mostra maior adesão ao movimento que, em 29 de maio, atingiu aproximadamente 200 municípios. Não há dados oficiais que confirmem todos os locais nem o total de participantes, mas os organizadores informaram ter reunido 750 mil pessoas.

No início da tarde, o País bateu a marca de 500 mil mortes por covid-19, dominando os discursos. Foram registradas aglomerações em vários protestos.

Carlos Melo* - O maior desafio das manifestações é serem amplas

O Estado de S. Paulo

No dia em que o Brasil ultrapassou o meio milhão de mortes pela Covid-19, mais uma vez suas ruas foram intensamente ocupadas pela política. Num momento especialmente delicado, milhares se aglomeraram e manifestaram críticas. Desta vez, foram pessoas em oposição ao governo. Houve cautela no uso de máscaras, mas não se conteve a indignação. Antes de manifestação de oposição, foi tentativa de expressar o profundo luto – cívico e pessoal — e sua dor. Mas também modo de reagir às afrontas do presidente da República.

Paradoxalmente, é o próprio Jair Bolsonaro quem desperta as ruas. Com seu negacionismo e estilo desagregador, estimula a divisão e o inevitável protesto.

No dia anterior, havia subido, mais uma vez, ao palanque. Está em campanha: com transmissão da TV Brasil, exibiu camiseta com alusão à eleição de 2022. Na quinta-feira, denunciou as urnas que o elegeram, em 2018, modo de antecipadamente contestar as do próximo ano. Uma semana antes, promoveu outro passeio eleitoral, em São Paulo. Contesta a vacina e age como se não houvesse pandemia e meio milhão de vidas não tivessem se perdido. Comporta-se indiferente aos rigores do cargo.

Eliane Cantanhêde - No país do 'deixa morrer'

O Estado de S. Paulo

Para Bolsonaro, pobres devem viajar de jegue, mas votam. Para Guedes, são só estorvo

A nova postura da CPI da Covid, mais estratégica, concreta e dura, coincide com a marca de 500 mil mortos e o recorde de mais de 98 mil infectados em 24 horas na sexta-feira passada, o que projeta tempos ainda mais difíceis nesta e nas próximas semanas. 

A CPI come pelas bordas, mirando no Ministério da Saúde e no gabinete das trevas, mas o alvo está no centro desse mingau: o presidente Jair Bolsonaro.

Se convocar o ex-governador deposto Wilson Witzel e dois médicos pró-cloroquina foi um erro, dando palanque para a defesa do indefensável nos dois casos, a CPI acertou ao endurecer o jogo e dar consequência às provas já colhidas em depoimentos e documentos. A cúpula da comissão decretou condução coercitiva e apreensão do passaporte do empresário Carlos Wizard, retirou-se do depoimento pró-cloroquina e transformou 14 testemunhas em investigados.

A lista dos alvos dá boas pistas sobre a estratégia. Ali estão o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, os ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores), o ex-secretário Fábio Wajngarten e o ex-assessor Arthur Weintraub. Afora Queiroga, que tenta se equilibrar entre o seu discurso e o do presidente, os demais são pivôs de dois dos grandes erros do governo: descaso pela vacina e obsessão pela cloroquina.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Depois dos 500 mil mortos pela Covid-19

O Globo

Em meio a tanta incerteza diante da pandemia mais letal dos últimos cem anos, havia uma certeza: cedo ou tarde o Brasil chegaria à marca das 500 mil vidas perdidas para o novo coronavírus. Somos o segundo país do mundo a atingi-la depois dos Estados Unidos. Trata-se de um choque de mortalidade sem paralelo na história recente. Desde o início da pandemia, a morte de brasileiros superou em quase 30% a média histórica. De cada nove mortos no país, dois estariam vivos não fosse o novo coronavírus. Tão dramático quanto a tragédia é não haver, a nosso alcance, perspectiva de frear essa marcha insensata. Ao contrário, os indicadores mostram que voltamos a acelerar rumo ao precipício. Depois de uma breve trégua, a média de mortes nos últimos sete dias retornou ao patamar superior a 2 mil.

Inútil discutir se estamos entrando na terceira onda, na quarta ou se nunca saímos da primeira. Para as famílias das cinco centenas de milhares de brasileiros que perderam pais, mães e filhos para a Covid-19, esse debate não tem serventia. A realidade de uma epidemia sempiterna, de ondas que vão e voltam, parece se tornar mais provável. Reportado inicialmente na China em fins de 2019, o Sars-CoV-2 veio para ficar. Erradicá-lo nas condições atuais é, segundo epidemiologistas, improvável. É possível, por intermédio da vacinação em massa, atingir um patamar de imunidade coletiva capaz de frear algumas cepas do vírus — mas outras virão, de modo inexorável.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Uma faca só lâmina

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.