domingo, 8 de agosto de 2021

Merval Pereira - Nem como farsa

O Globo

O embate em processo entre o presidente Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF) é o caso exemplar de um fato histórico que aconteceu no Brasil como tragédia, e hoje se repete como farsa, para confirmar a frase famosa de Karl Marx. No dia 16 de janeiro de 1969, em decorrência do AI-5 assinado em dezembro de 1968, foram  aposentados compulsoriamente  os Ministros Victor Nunes Leal, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

Em solidariedade aos cassados, renunciaram em seguida o então Presidente, Ministro Gonçalves de Oliveira, e o decano da Corte, Ministro Lafayette de Andrade. Em outubro de 1965, o governo, através do AI-2, ampliara de 11 para 16 os ministros do Supremo. Após as cassações, com a nomeação de mais cinco ministros, o governo militar, garantida a maioria, fez retornar o formato original de 11 ministros, que persiste até hoje.

Aqui entre nós, na atualidade, a tentativa de Bolsonaro e seus militantes de emparedar o STF está encontrando resistências democráticas vigorosas. O advogado Flavio Carvalho Brito, que trabalhou com Victor Nunes Leal e herdou seu espólio profissional, descobriu recentemente uma carta em que, no dia 16 de junho de 1964,  pouco mais de dois meses depois do golpe militar, o  então ministro escreve a um amigo de nome Mario, não identificado, dizendo que o preocupou a “notícia, que você me deu, de haverem falado ao Marechal Castelo Branco  de um pretenso trabalho de três  ministros do Supremo Tribunal - entre os quais eu - no sentido de aqui se formar um bloco hostil ao governo. (...)”.  

Quatro anos e sete meses depois, a cassação dos membros do Supremo mostrou que a preocupação de Victor Nunes não era vã. O que se segue é exemplar do seu espírito democrático, e uma lição para os dias de hoje: “Quem chega ao Supremo Tribunal tem um passado pelo qual zelar, na advocacia, na magistratura, no magistério, em funções administrativas e políticas, e está atento ao julgamento dos seus contemporâneos e da posteridade. O juiz, mormente no Supremo Tribunal, não recompensa benefícios, mas exerce uma elevada função que exige espírito público e dignidade. (...)

Bernardo Mello Franco - O silêncio dos cúmplices

O Globo

Na semana em que Jair Bolsonaro xingou a mãe de um ministro do Supremo e ameaçou dar golpe para escapar da Justiça, dois personagens se destacaram pela omissão: o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o presidente da Câmara, Arthur Lira. Ambos chegaram aonde estão com ajuda do presidente. Agora agem como cúmplices da escalada autoritária.

A Constituição afirma que cabe ao Ministério Público defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais. Aras ignora esses deveres para proteger quem o nomeou. Sua incúria expõe o Judiciário a desgastes e começa a gerar um clima de insurreição na PGR.

Na sexta-feira, 27 subprocuradores-gerais divulgaram uma carta pública de protesto. O texto afirma que o chefe da instituição não pode “assistir passivamente” aos “estarrecedores ataques” de Bolsonaro.

Aras transformou a PGR num peso morto em Brasília. Em vez de investigar, blinda o presidente contra investigações. Em vez de denunciar, acoberta crimes contra a saúde pública e a democracia.

Míriam Leitão - Desconfiança é o fermento do golpe

O Globo

O Brasil está na pior crise institucional desde a redemocratização e é preciso entender os elementos desta crise. Todos os autocratas que conspiram contra a liberdade usam a estratégia de atacar o sistema eleitoral. Foi assim com Trump, foi o que fez a Venezuela chavista, foi a estratégia de Viktor Orbán na Hungria. Houve uma escalada das agressões do presidente Jair Bolsonaro contra a urna eletrônica nos últimos dias. Ele não faz isso apenas para defender o voto impresso. Ele mira mais alto. Quer a desconfiança no sistema eleitoral, almeja o conflito social, porque essas são as bases do golpe que pretende dar.

A última semana foi diferente, pela natureza da reação do Judiciário. Em vez de notas de repúdio, um inquérito administrativo aberto no TSE e uma notícia-crime apresentada, pelo TSE, ao STF. O ministro Alexandre de Moraes aceitou a denúncia e incluiu Jair Bolsonaro no inquérito das fake news. O presidente Bolsonaro ameaçou explicitamente agir fora da Constituição. O ministro Luiz Fux, diante da escalada de agressões, suspendeu a reunião entre os poderes e apontou para o responsável: “o presidente da República tem reiterado ofensas e ataques de inverdades a integrantes desta Corte”. Normalmente os pronunciamentos abusam das orações sem sujeito, e o país tem que depreender de quem se fala. Desta vez, foi diferente.

Dorrit Harazim - Galope insano

O Globo

A semana que passou foi ardida, até meio vulcânica, com togas esvoaçando e o presidente da República sendo publicamente desconvidado à mesa dos três Poderes pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux. Foi um “basta” quase catártico ao galope transviado de Jair Bolsonaro no poder. E pegou de surpresa o mandatário que prega a insânia de imprimir os votos de todas as urnas eletrônicas, “senão não haverá eleição em 2022”. Habituado a ameaçar as instituições com força de ruptura, Bolsonaro parece não ter percebido o grave sinal emitido pelo Judiciário dias antes, quando foi formalmente incluído em inquéritos pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo STF. Prosseguiu nas bravatas, ofensas e acusações sem prova e continua a perder o freio.

É possível que o “basta” de Fux tenha vindo tarde demais. Vale olhar para a ruína cívica que Donald Trump legou à história democrática dos Estados Unidos para se inquietar com os rumos brasileiros para bem além de 2022.

Como se sabe, em novembro do ano passado o democrata Joe Biden derrotou Trump por ampla maioria de votos eleitorais (306 contra 232) e confortável maioria no voto popular (81,2 milhões contra 74,2 milhões). Ainda assim, e apesar de ter dois processos de impeachment no currículo, Trump conseguiu convencer a maioria dos que nele votaram de que a eleição foi fraudulenta e precisa ser justiçada. A invasão ao Capitólio contra a ratificação eleitoral de Biden, em 6 de janeiro, pode e deve ser chamada de tentativa de golpe. Apesar de não ter tido êxito, ficou a chama. Seja por conveniência eleitoral, seja por sandice, toda uma leva de governadores, congressistas e senadores republicanos continua alinhada à tese da Big Lie (Grande Mentira) de Trump — segundo a qual a vitória nas urnas lhe foi roubada. O desmonte dessa teoria conspiratória não está ao alcance da vista, sendo provável que os EUA levem mais de uma geração para reencontrar confiança em seu processo eleitoral.

Luiz Carlos Azedo - O partido fardado

Correio Braziliense / Estado de Minas

O confronto aberto de Bolsonaro com o Supremo e o TSE, a propósito da segurança das urnas eletrônicas, é uma armadilha que precisa ser desarmada

O ex-ministro da Defesa Raul Julgmann, em artigos, entrevistas e lives, vem reiterando a necessidade de o Congresso debater a questão militar no Brasil, para definir claramente a política de Defesa Nacional, o papel das Forças Armadas, suas relações com a sociedade e os limites da participação dos militares da ativa na administração pública. Esse debate está na ordem do dia, protagonizado por estudiosos e militares da reserva, em razão das atitudes e declarações golpistas do presidente Jair Bolsonaro e da presença de grande número de militares no seu governo, muitos dos quais da ativa.

As intervenções militares na vida política republicana foram frequentes: 1889 (Proclamação da República), 1893 (Revolta da Armada), 1922 (os 18 do Forte), 1924 (Revolução em São Paulo e início da Coluna Prestes), 1930 (a Revolução), 1935 (a Intentona), 1937 (o Estado Novo), 1945 (deposição de Vargas), 1954 (suicídio de Getúlio), 1954 (Memorial dos coronéis), 1955 (a “Novembrada”, deposição de Carlos Luz e Café Filho), 1956 (Jacareacanga), 1959 (Aragarças), 1961 (tentativa de impedimento de Goulart), 1963 (revolta dos sargentos), 1964 (deposição de Goulart), 1968 (AI-5).

Essas intervenções nunca tiveram um caráter moderador; a maioria atalhou ou afrontou a democracia, sendo derrotada. As que foram vitoriosas, quase sempre, arrastaram a cúpula militar para aventuras políticas e resultaram em regimes autoritários. Atos institucionais, fechamento do Congresso, cassação de mandatos e decretos-lei não têm esse caráter moderador. Foram obra do chamado “partido fardado”, que agora o presidente Jair Bolsonaro tenta ressuscitar, como um náufrago do passado.

Ricardo Noblat - Militares bolsonaristas aceitam sugestões sobre novo golpe

Blog do Noblat / Metrópoles

Como justificar uma intervenção militar no ano que vem caso o atual presidente da República não se reeleja?

O golpe militar que pôs fim em 1945 à ditadura comandada por Getúlio Vargas teve como justificativa restaurar o regime democrático interrompido com a chamada Revolução de 1930 – por sinal, apoiada por eles, que apoiaram também o golpe do Estado Novo de Vargas em 1937.

O suicídio de Getúlio em 1954, que retornara ao poder como presidente democraticamente eleito, adiou a ameaça de um novo golpe militar que só foi aplicado em 1964 sob o pretexto de livrar o país do comunismo e de defender a democracia. Pelos 21 anos seguintes, o país viveu sob uma ditadura militar.

Agora, militares da ativa e da reserva que apoiam Bolsonaro dão tratos à bola à procura de um discurso que sirva de desculpa ao golpe que gostariam de dar caso o atual presidente acabe derrotado nas eleições do ano que vem. A defesa da democracia é um mote gasto. E se Bolsonaro perder, mas não para Lula?

Eliane Cantanhêde - E o Congresso, cadê?

O Estado de S. Paulo

O Brasil está em guerra pela democracia, mas a ‘casa do povo’ cuida dos próprios interesses

Primeiro, o Congresso triplicou o fundo eleitoral para escandalosos R$ 5,7 bilhões em plena pandemia de covid-19 e de desemprego. Depois, tratou de reduzir os mecanismos de controle sobre essa dinheirama, propondo um código que tira a Justiça Eleitoral da frente e praticamente deixa a “fiscalização” do fundo e das campanhas por conta dos... partidos.

O País está no pior dos mundos, com mais de 560 mil mortos pela covid-19 e enfrentando uma crise institucional de um presidente da República que ameaça rasgar a Constituição contra o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e os próprios ministros, que resistem bravamente em nome da democracia. E o Congresso, onde está?

STF, TSE, milhares de empresários, intelectuais e líderes religiosos, sociedades de ciência e direitos humanos, entidades profissionais e religiosas, subprocuradores da República e grupos de parlamentares cerram fileiras contra os ataques de Bolsonaro à Constituição e às eleições. A resistência, porém, não encontra o devido eco na “casa do povo”, onde a maioria está mais preocupada com a própria reeleição e com o próprio bolso do que com a democracia.

Sergio Fausto* - Ainda a terceira via

O Estado de S. Paulo

Os democratas têm um patrimônio a preservar: a democracia liberal, na acepção contemporânea

O surgimento de uma terceira via eleitoral seria muito importante para a democracia brasileira. Não apenas ofereceria uma opção alternativa ao eleitor, mas também romperia uma bipolaridade que empobrece o debate público e carrega de nuvens pesadas o horizonte político brasileiro. As chances de uma terceira via estar no segundo turno são diretamente proporcionais à sua capacidade de deslocar Jair Bolsonaro para fora dele. Já seria um feito extraordinário, pois Lula da Silva não representa uma ameaça à democracia brasileira, ao contrário do atual presidente.

Para chegar lá a terceira via terá de marcar diferenças nítidas em relação ao candidato do PT e deixar claro o seu antagonismo com Bolsonaro e o que ele representa. É absurdo apresentar-se como ponto equidistante dos dois extremos. Repito aqui o que Miriam Leitão disse de forma lapidar: nessa disputa só há um extremista, Bolsonaro. Não é hora de “doisladismos”, mas de traçar a linha divisória entre o campo democrático e o autoritário.

Pode-se criticar o PT e Lula por inúmeras razões, a começar por sua vocação hegemonista, mas é preciso reconhecer que o ex-presidente poderia ter mudado a regra do jogo e sido eleito para um terceiro mandato consecutivo, mas não o fez; que nem seu governo nem o de sua sucessora avançaram sobre a autonomia do Ministério Público; e que Dilma Rousseff não interveio na Polícia Federal para bloquear a Operação Lava Jato. Isso para mencionar apenas alguns fatos relevantes que indicam as credenciais democráticas do PT, em que pese o partido pagar tributo a regimes autoritários ditos de esquerda e demonstrar atração pelos populismos latino-americanos.

Rolf Kuntz - Democracia sob ataque num país sem governo

O Estado de S. Paulo

No Brasil sem rumo, faltam projetos e sobram arroubos de autoritarismo

O Brasil precisa de um governo pelo menos para chamar de ruim. Desgovernado há quase três anos, este é um país sem rumo, sem projeto de crescimento, sem segurança institucional e sem perspectiva de modernização. Inflação acima de 8% em 12 meses e desemprego superior a 14% batem recordes. A vacinação continua atrasada e sujeita a interrupções, por causa de erros escandalosos – e mortíferos – cometidos pelo poder central no enfrentamento da pandemia. Credores de precatórios estão arriscados a um calote, a política fiscal é cheia de remendos e o teto de gastos pode ficar cheio de furos, mas sem criar um chão de estrelas. Ameaças de golpe, discursos de ódio e falsidades compõem a maior parte das manifestações do presidente da República, o mais inepto, mais inoperante e mais desastroso chefe de governo da História nacional. Num de seus muitos arroubos ditatoriais, ele ameaçou agir fora da Constituição para enfrentar o Poder Judiciário. Quanto custará aos brasileiros mais um ano dessa catástrofe?

Avesso ao interesse público, o presidente permanece empenhado na reeleição, na prevenção de um impeachment e na proteção de filhos sujeitos a investigações criminais. Sua atividade política se concentra em arranjos eleitorais, em acertos com o Centrão, agora instalado na chefia da Casa Civil, e na mobilização de adeptos. Para falar com seus apoiadores basta circular pelo Brasil, participar de algumas inaugurações e promover ajuntamentos e passeatas de motos.

Mensagens significativas sobre projetos para o País são dispensáveis, além de obviamente superiores à sua capacidade. Nenhum discurso elaborado é necessário para defender a cloroquina como remédio anticovid, depreciar as instituições e estimular manifestações a favor do voto impresso. Seus apoiadores têm-se mostrado pouco exigentes quanto a planos de governo, valores morais e padrões de gestão pública, mas demonstram habilidade, é preciso reconhecer, para desfilar em motocicletas.

Bruno Boghossian - O golpismo dá votos?

Folha de S. Paulo

Presidente não tem medo de perder votos por autoritarismo e espera até expandir sua base

Só 2% dos eleitores de Jair Bolsonaro afirmam que ele é desonesto, mas 25% consideram o presidente um político autoritário. Nenhuma característica negativa apresentada pelo Datafolha em sua última pesquisa tem tanta aderência entre os próprios bolsonaristas quanto a ideia de que o capitão não é um democrata.

Apesar de reconhecer o desapreço de Bolsonaro pelas regras do jogo, essa parcela do eleitorado mantém seu apoio e se mostra inclinada a ficar a seu lado mais uma vez em 2022. Ao menos em seu reduto político mais fiel, o presidente conseguiu vender sua veia autoritária como uma demonstração de força.

A campanha crescente de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas, os ataques a ministros do Supremo e a ameaça aberta à realização de eleições sugerem que o presidente não tem medo de perder votos por suas tendências antidemocráticas. Ao contrário, tudo indica que ele explora o golpismo como uma ferramenta para fortalecer sua base radical e até expandir seu eleitorado.

Hélio Schwartsman - Divergência convergente

Folha de S. Paulo

Filósofos mostram que é possível discordar sem agredir, virtude que parece em falta nos dias de hoje

Daniel Dennett e Gregg Caruso. Ambos são filósofos e defendem uma reforma radical do sistema penal, que inclui a abolição da sentença capital, uma substancial redução das penas e a criação de programas que ajudem na reinserção social dos prisioneiros depois que deixam a cadeia. Mas as razões por que fazem isso não poderiam ser mais diferentes.

Dennett sustenta que o livre-arbítrio existe (ainda que numa modalidade bem “leve”) e que ele é compatível com o universo determinista em que provavelmente vivemos. Já Caruso afirma que o livre-arbítrio não passa de ficção, quer vivamos num universo determinado ou indeterminado.

Se os dois, partindo de pressupostos diametralmente opostos, chegaram a resultados parecidos, espíritos ultrapragmáticos podem ficar tentados a concluir que a filosofia é mesmo “a ciência com a qual ou sem a qual o mundo vai tal e qual”. Mas, para os que, como eu, acreditam que razões fazem diferença, então a leitura de “Just Deserts” (justos merecimentos) surge como um banquete intelectual.

Janio de Freitas – A salvação contra o futuro

Folha de S. Paulo

Se Bolsonaro chegar ao golpe, será porque teve permissão

O suspense que aguarda os próximos espasmos institucionais exprime a fragilidade, tão negada, do sistema de defesa da legalidade democrática. Um desvairado lançou o país nas impropriedades que quis e disse à vontade idiotices até letais, sem reação de parte alguma dos chamados Poderes instituídos durante dois anos e sete meses — já quase três quartos do mandato presidencial. A esta altura, mesmo a reação incipiente é envolta em crise a se tornar ainda mais grave.

O agravamento é inevitável. E imprevisível no sentido e na dimensão. Bolsonaro o busca. Sozinho, o Judiciário pode ser heroico, não uma certeza. O Congresso está reduzido a um não-poder: os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, mostram não estar à altura do momento, nem sequer dos cargos. A Procuradoria-Geral da República está contida pelo carreirismo de Augusto Aras.

Bolsonaro, por sua vez, foi forçado a uma reviravolta. Assumiu como agente de um plano cultivado no ressentimento de um segmento pretensioso e já velhusco do Exército. A profusão de militares, em estimados seis mil cargos civis, é devida ao plano mais que ao testa-de-ferro. O início do mandato foi de desenvolturas arrogantes, com medidas desafiadoras e provocações insolentes. Cada uma das decisões de governo, da proteção ao garimpo e ao desmatamento ilegal até os ataques à educação e à cultura, encontra conexão com alguma das questionadas teses de militares reformados e ativos.

Os surgimentos simultâneos da apropriação de dinheiro público por Flávio Bolsonaro com as rachadinhas, Fabrício Queiroz e ensombreadas referências no caso Marielle Franco, como as relações milicianas, tiveram dois efeitos imediatos. A revelada vulnerabilidade de Bolsonaro enfraqueceu-o, na política e na comunicação pública. E logo abriu uma rotina de desgastes que o tirou da arrogância para a exasperação. Seu interesse transitou, mais a cada dia, do plano original para o interesse pessoal e familiar.

Elio Gaspari - O governo retarda a internet nas escolas

O Globo / Folha de S. Paulo

O Senado aprovou um projeto que mandava o governo aplicar R$ 3,5 bilhões para assegurar o acesso dos alunos de escolas públicas à internet. Bolsonaro vetou a iniciativa

Um governo pode ter uma perna no atraso, outra na malandragem e a terceira em otras cositas más. O de Bolsonaro tem todas.

O Senado aprovou um projeto da Câmara que mandava o governo aplicar R$ 3,5 bilhões do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o FUST, para assegurar o acesso dos alunos de escolas públicas à internet. Bolsonaro vetou a iniciativa. Era o jogo jogado, pois é atribuição do presidente da República vetar decisões do Congresso. Jogando o jogo, o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro, e a lei foi promulgada. Sempre dentro do quadrado da Constituição, o governo recorreu ao Supremo Tribunal Federal. Perdeu.

Até aí, movia-se a perna do atraso de um governo que reluta em aplicar o dinheiro do FUST para levar a internet às escolas públicas durante uma pandemia. (A rede privada de ensino, quando teve meios, adaptou-se.)

Na semana passada, moveu-se a perna da malandragem. Um dia antes do fim do prazo dado pelo Supremo para que o governo se mexesse, Bolsonaro baixou uma Medida Provisória adiando o investimento de R$ 3,5 bilhões. Chutou a bola para cima, pois a MP vigorará por 120 dias, a menos que seja aceita pelo Congresso.

Passou-se quase um ano, e as escolas públicas não receberam um tostão. Alguém poderia argumentar que o governo tenta segurar as despesas da Viúva e uma conta de R$ 3,5 bilhões é salgada. Nessa hora, olhando-se direito, vê-se a terceira perna do governo.

O que a mídia pensa: Editoriais

EDITORIAIS

Em defesa da urna eletrônica

O Globo

A semana que passou entrará para a história como aquela em que as mentiras do presidente Jair Bolsonaro sobre o sistema de votação brasileiro foram enfim confrontadas à altura. Na segunda-feira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) abriu um inquérito administrativo para apurar os ataques sem provas que ele vem fazendo à lisura do processo eleitoral. Na quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou pedido do TSE para que o presidente virasse alvo da investigação em curso sobre a disseminação de fake news. Na quinta, um grupo de empresários, economistas e intelectuais divulgou manifesto de apoio ao sistema eleitoral. No mesmo dia, a Comissão Especial da Câmara rejeitou, por 23 votos a 11, o parecer que propunha a implementação do voto impresso. Mesmo que a ideia ainda vá a plenário, é certo que será derrotada.

São todas notícias excelentes para a saúde da democracia brasileira. Apesar disso, a campanha de Bolsonaro, mesmo desmentida pelos fatos, conseguiu mobilizar uma parcela barulhenta da sociedade e abalou a confiança de muitos no sistema de votação. A propaganda bolsonarista continua a disseminar suas mentiras pelas redes sociais, como revelou reportagem do GLOBO. Pesquisas de opinião têm verificado uma queda, ainda que modesta, na confiança nas urnas eletrônicas. Não há motivo racional para embarcar na conversa fiada daqueles que levantam dúvidas sobre um sistema que funciona há décadas sem nenhuma evidência de fraude, é submetido regularmente a testes e aperfeiçoamentos e, diante tudo o que se vê no mundo, deveria ser motivo de orgulho para o país.

Mudar essa percepção errônea que se espalhou sobre as urnas eletrônicas é agora prioridade do país. Nem todos os que passaram a desconfiar delas são militantes bolsonaristas dispostos a causar o caos para preservar o poder. Há brasileiros genuinamente preocupados com a lisura das eleições depois de ouvir as reiteradas mentiras do presidente e da campanha de seus aliados. Escutar suas dúvidas e informá-los de forma didática é a melhor maneira de combater esse vírus da desconfiança.