domingo, 15 de agosto de 2021

Luiz Sérgio Henriques* - Esquerda positiva, a hora e a vez?

O Estado de S. Paulo

É necessária uma aguda reflexão sobre a ‘questão democrática’ e o centro político

Num momento em que nosso passado de golpes e atropelos parece obstinar-se em não querer passar, oprimindo como um pesadelo, segundo a frase famosa, o cérebro dos vivos, podemos também, paradoxalmente, nele buscar sinais que nos orientem ou permitam discernir rotas menos tortuosas. É que tivemos tempo suficiente de aprendizado na luta contra o autoritarismo e nos educamos coletivamente por meio de experiências que não se deixam apagar e, seja como for, estão disponíveis para quem veio depois e não as viveu em primeira pessoa.

Exercícios contrafactuais são sempre arbitrários, mas não de todo inúteis. Não era inevitável, por exemplo, que a modernização brasileira se revestisse do caráter autocrático assumido a partir de 1964. Tal caráter não estava escrito nas estrelas ou latente na “natureza do processo”, mas decorreu também de más escolhas políticas. No seu conjunto, os atores do campo “progressista” tinham da democracia uma concepção limitada, como se ela fosse uma variável subordinada às “reformas de base”. Defender a Constituição de 1946 e apostar nas eleições de 1965 teria sido um caminho menos aventuroso, cuja viabilidade dependia da existência mais vigorosa de uma “esquerda positiva”, à moda de San Tiago Dantas, que desgraçadamente não tínhamos.

A seguir, a luta contra o regime autoritário conheceria uma esquerda dividida e muitas vezes impotente, a travar o seu “combate nas trevas”. Parte dela negava as transformações em curso e se apegava aos fortes mitos revolucionários da época, como o da China ou o de Cuba. Outra parte, no entanto, que por sinal abrigava a maioria dos egressos do putsch de 1935, seguia rumo diametralmente oposto ao do passado, avalizando – mesmo na clandestinidade – o partido dito de “oposição consentida”, o MDB de Ulysses e Tancredo. Sem dúvida, um sinal de esquerda positiva, preocupada com os humores e as posições do centro político, sem o qual não seria possível derrotar o arbítrio.

Míriam Leitão - A construção e o desmonte

O Globo

A democracia brasileira foi construída no solo. Foi o resultado de uma vasta resistência nacional travada, incansável e dolorosamente, em planos diversos. Temos mortos como testemunhas. Não foi o resultado automático do fim da Guerra Fria, nem mesmo a concessão de generais da “abertura”. Foi conquista nossa. Países de instituições definidas como “maduras” também sofrem nestes tempos de governantes que chegam ao poder pelo voto e conspiram contra o edifício democrático. O 6 de janeiro em Washington serve para nos lembrar que não há nação a salvo de um presidente deletério.

Cada semana tem trazido uma coleção de horrores perpetrados por Bolsonaro e seus apoiadores. Mas a última foi excessiva. O ridículo desfile militar na Esplanada exigido pelo presidente foi revelador da falta de espinha dorsal dos comandantes militares. Eles fazem qualquer papel imposto a eles, aceitam todas as humilhações e, depois, vão entregar a alguns ouvidos garantias de que não respaldarão um golpe. Ora, já o estão respaldando.

A prisão de Roberto Jefferson não surpreende e ele deve ter até gostado, porque fez tudo o que podia para chamar atenção em postagens radicais e grotescas. Mas é o tal negócio, as instituições não podem se dar ao luxo de fingir que não estão vendo o doido. Se ele pratica crime à luz do dia, precisa responder por isso, e o ministro Alexandre de Moraes agiu bem. Mas foi esse sujeito caricato, figurinha repetida de todos os escândalos, que esteve dias atrás no Palácio do Planalto para um encontro com o presidente e o sempre servil general Eduardo Ramos.

Carlos Pereira - A sobrevivência venceu

O Estado de S. Paulo

Reeleição é a forma de sobrevivência política em democracias e, por ela, alguns pagam qualquer custo

A sociedade brasileira ficou chocada com os acontecimentos políticos ocorridos ao longo da semana, produzidos tanto pelo Executivo como pelo Legislativo. 

O presidente Jair Bolsonaro radicalizou com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em sua defesa do voto impresso, inclusive com ofensas pessoais e ameaça de impeachment contra dois de seus ministros, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Mesmo tendo sido amplamente derrotado na Comissão Especial, forçou a votação no plenário da Câmara dos Deputados da proposta de reforma constitucional que tornaria o voto impresso obrigatório. Mobilizou inclusive um desfile de tanques das forças armadas, que mais se assemelhou a um “fumacê”. 

Embora a PEC do voto impresso tenha sido derrotada no plenário da Câmara, vários parlamentares de oposição, que não fazem parte da base de apoio do presidente, votaram, surpreendentemente, a favor do voto impresso. Para completar, deputados aprovaram em primeiro turno a reforma do sistema eleitoral que referendou o retorno das coligações partidárias nas eleições proporcionais, que tem estimulado a proliferação de partidos.

O que explica esses acontecimentos até certo ponto inusitados?

Eliane Cantanhêde – O rei das fake news

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro e as fake news: mortes, urnas, cloroquina, vacina, máscara, isolamento...

O presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, anunciou para o povo brasileiro um “documento do tal do Tribunal de Contas da União”, o TCU, concluindo que os números de mortes pela covid-19 não chegavam à metade e teriam sido fraudados pelos governadores para abocanhar mais verbas na pandemia. A verdadeira e chocante fraude, porém, foi a fala do presidente, o rei das fake news.

Em depoimento à Polícia Federal, o funcionário do tribunal Alexandre Marques, autor do “documento”, contou a verdade nua e crua: o texto não era “do tal do TCU”, era só uma espécie de rascunho pessoal e foi adulterado na Presidência da República, porque o original não tinha o logotipo do TCU, nem nome, nem cabeçalho, como o que foi espalhado pelos bolsonaristas via internet. Gravíssimo.

“Fiquei totalmente indignado e achei uma total irresponsabilidade do mandatário da Nação”, disse Marques à PF sobre o pronunciamento do presidente. Conforme o depoimento, divulgado pela TV Globo, foi o seu pai, militar da reserva e contratado da Petrobrás, quem repassou o rascunho para o presidente. Que, como se viu, não pensou duas vezes antes de fazer uso político dele.

Merval Pereira - Rio de Janeiro, DF

O Globo

A volta da capital para o Rio de Janeiro tem sido apontada como solução para a crise política e econômica que por anos vem dominando a cidade que, apesar dos pesares, continua sendo símbolo da nacionalidade, dentro e fora do país, a cidade brasileira mais visitada pelos estrangeiros.

Um trabalho da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) traz uma aprofundada visão sobre nossos problemas, e uma solução criativa: transformar o Rio de Janeiro em um segundo Distrito Federal, coisa que é na prática, a cidade mais “federal” do país.

O livro, organizado por Christian Edward Cyrill Lynch, Igor Abdalla Medina de Souza e Luiz Carlos Ramiro Junior, faz a defesa da federalização, e entende que salvar o Rio já não se trata de uma questão de segurança pública, mas nacional. As organizações criminosas tomaram conta da região metropolitana e espalharam seu domínio inclusive sobre outras partes do estado fluminense, o poder público não consegue exercer domínio sobre parte significativa do território e da população.

Elio Gaspari - A voz de Trump vem ao Brasil

O Globo / Folha de S. Paulo

Entre ex-presidente americano e Bolsonaro a diferença são os militares

A repórter Beatriz Bulla revelou que deve chegar ao Brasil no próximo domingo Jason Miller, ex-porta-voz de Donald Trump. Vem divulgar sua rede social, Gettr, criada para contornar a expulsão de Trump das grandes plataformas americanas. A Gettr tem 250 mil brasileiros listados. Entre eles estão Jair Bolsonaro e dois de seus filhos.

Miller foi uma testemunha privilegiada da ruinosa insurreição de 6 de janeiro, quando Trump tentou melar o resultado da eleição americana. Para quem viu o desfile do pelotão da fumaça em frente ao Palácio do Planalto na semana passada, o golpe de Trump era muito mais delirante.

À tarde, o vice-presidente Mike Pence presidiria a reunião do Senado que sacramentaria a eleição de Joe Biden.

Às oito da manhã, Trump sabia que tinha milhares de seguidores em Washington e falou com Jason Miller. Esperava que Pence aceitasse as objeções dos republicanos e revertesse o resultado: “Faça isso, Mike. Esta é a hora da coragem”, tuitou.

Pouco depois, Trump ligou para Pence, mas o vice disse que não tinha poderes para tanto. Seu papel seria apenas cerimonial. “Você não tem coragem”, respondeu Trump. Ele tinha um plano e foi para um comício perto da Casa Branca.

Bruno Boghossian - Golpismo internacional

Folha de S. Paulo

Presidente e aliados plantaram semente da insurreição no Paraguai e nos EUA

Em sua campanha para melar as próximas eleições, Jair Bolsonaro insinuou que há envolvimento estrangeiro numa conspiração fantasiosa para fraudar as urnas eletrônicas no ano que vem. "Outros países têm interesse em ter gente na Presidência, à frente de governo de estado, à frente de grandes cidades, pessoas mais simpáticas a esse governo de fora", declarou, há cerca de dez dias.

Esses inimigos externos misteriosos são um elemento adicional do discurso batido de que haveria uma trama poderosa para tirar Bolsonaro do cargo. Até agora, no entanto, os únicos personagens que parecem conspirar com atores políticos de outros países são o próprio presidente brasileiro e seus aliados.

Hélio Schwartsman - Instituições pirrônicas

Folha de S. Paulo

Outra 'vitória' como essa das nossas instituições e estamos perdidos

As instituições estão funcionando? A pergunta é difícil de responder, porque tanto a palavra "instituições" como a expressão "estar funcionando" comportam múltiplas interpretações. "Instituições" pode designar tanto as estruturas formais, isto é, criadas por lei, pelas quais uma sociedade se organiza (Congresso, Judiciário), como os padrões de comportamento mais estáveis e valorizados que seus membros reproduzem (casamento, democracia, imprensa).

"Estar funcionando" não é menos polissêmico. Quando conjugado a "instituições" pode refletir diferentes níveis de expectativa. Os mais exigentes dirão que as instituições funcionam quando fazem com que todos os agentes se comportem como lordes ingleses numa partida de críquete. Os mais indulgentes dirão o mesmo quando elas conseguem prevenir rupturas constitucionais e a violência política.

Janio de Freitas – Tudo mais em novas mãos

Folha de S. Paulo

Funcionamento de parte das instituições exige atenção para os seus efeitos

O funcionamento, afinal, de parte das instituições em defesa da Constituição e do regime vigente exige atenção para os seus efeitos. São contrapostos. E não há clareza alguma sobre o que daí resultará.

Longe de ser “questão encerrada”, a combinação urna eletrônica/fraude está encaminhada para ser um dos temas mais explosivos na disputa eleitoral.

Para dizer tudo, na conturbação que Bolsonaro estará apto a promover, para arruinar a eleição ou, diz a gíria, para tentar vencer na marra.

Essa probabilidade dramática só decairá, pode-se presumir, caso não emerjam desfechos fortes para fatos já em andamento ou erupção nova, com capacidade de esvaziar o bolsonarismo.

Mas, tudo sugere, a eleição presidencial de 2022 encaminha-se para ser muito perigosa. Em numerosos sentidos, inclusive para a população.

As decisões judiciais que Bolsonaro personifica nos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes são o desassombro esperado da Justiça contra o ataque do golpismo, da mão armada, da morte perversa, da mentira e da corrupção.

Bernardo Mello Franco – O feirão do Capanema

O Globo

O governo incluiu o Palácio Gustavo Capanema, uma joia do centro do Rio, no “feirão de imóveis” anunciado para o fim do mês. O edifício é um marco da arquitetura moderna e um patrimônio da cultura brasileira. Nos últimos sete anos, a União investiu R$ 100 milhões para restaurá-lo. Agora o ministro Paulo Guedes quer vendê-lo para engordar o caixa às vésperas da eleição.

A sede do antigo Ministério da Educação e Saúde nasceu do traço do franco-suíço Le Corbusier, que visitou o país em 1936. O croqui reunia os principais elementos de sua arquitetura: construção sobre pilotis, terraço-jardim, janelas em fita.

O projeto foi desenvolvido por uma equipe integrada por Oscar Niemeyer e Affonso Eduardo Reidy. Os azulejos de Candido Portinari, as esculturas de Bruno Giorgi e os jardins de Burle Marx transformariam o edifício num museu a céu aberto, inaugurado por Getúlio Vargas em 1945.

Dorrit Harazim - Porta dos fundos

O Globo

Faltam três semanas para o vigésimo aniversário do 11 de Setembro de 2001. O ataque terrorista daquele dia foi o mais ousado da História moderna. Deixou os Estados Unidos de joelhos por várias horas e, de certa forma, sem rumo desde então. Data sombria, portanto, indelével da memória coletiva deste milênio, assim como o 22 de novembro de 1963 (assassinato de John F. Kennedy), marcou fundo quem viveu a segunda metade do século XX. Distintos em quase tudo — escopo, duração, vítimas anônimas x alvo único, consequências históricas —, os dois acontecimentos têm em comum um tripé capaz de minar qualquer sociedade: medo, insegurança coletiva e teorias conspiratórias. A morte violenta de Kennedy deixou o país em orfandade sentimental. Os suicidas islâmicos do 11 de Setembro, que reduziram a escombros as orgulhosas Torres Gêmeas do capitalismo e racharam a fortaleza militar do Pentágono, expuseram ao mundo a vulnerabilidade da superpotência. Foi um choque e um luto cataclísmicos.

O atual presidente, Joe Biden, assumiu a Casa Branca decidido a acabar com a guerra que os EUA travam no Afeganistão há 20 anos. Ela fora desencadeada por George W. Bush, com apoio maciço do Congresso e recurso à tortura, para castigar o país que dera abrigo ao grupo jihadista al-Qaeda, responsável pela matança do 11 de Setembro. Está agora em seus estertores, mas não da forma desejada por Washington.

Paulo Fábio Dantas Neto* - As chances de uma terceira via diante da reciclagem da primeira

Tornou-se lugar comum em análises políticas prospectivas voltadas às eleições de 2022 vaticinar que o chamado centro democrático até aqui não emplacou e que não emplacará. Temos aí uma constatação irrefutável e uma previsão afoita. Um uso de flash fotográfico para tratar de processo que requer filmadora.

Os raciocínios decorrentes dessa ilusória percepção do processo político como algo linear, no qual o presente é criado e explicado pelo antecedente e, ao mesmo tempo, cria e explica o sucedente são: primeiro, que Bolsonaro seria resultado direto e lógico da rejeição ao PT, logo, a rejeição foi o erro do qual resulta a tragédia social e política que o Brasil vive hoje; segundo, que a situação atual, indicada em pesquisas, de inconteste liderança de Lula comprova que esse é o caminho para derrotar o mal. A remissão de um suposto pecado, supostamente original, seria condição para que o país volte a ter futuro.

Acontece que a banda não tocou, não toca, nem tocará assim. Comecemos por relembrar: a eleição de Bolsonaro não foi desfecho natural e obrigatório da rejeição ao PT. Assim como a pedalada fiscal foi o argumento jurídico, a rejeição do eleitorado, sentindo-se logrado pelo marketing da campanha de 2014, foi o lastro social do impedimento de Dilma Rousseff, que passara a ser objetivo político de várias forças que a apoiaram naquela eleição, com destaque ao MDB e ao Centrão. Mas o que ocorreu depois (o esgarçamento e não a unidade eleitoral das forças que sustentaram o impeachment e a instalação de um governo de transição) não estava escrito nas estrelas. A Lava-Jato foi um solvente externo, cuja ação foi potencializada pela incapacidade política da nova coalizão governante de ir além do salve-se-quem-puder. Em vez de continuidade entre transição e nova situação (como entre Itamar e FHC, em 1993/94), deu Bolsonaro.

Hoje não há só duas bandas tocando, a do governo Bolsonaro e a da oposição de esquerda. Assim querem e fazem pensar as análises que vaticinam o caráter irremovível dessa polarização. Família e milícias de Bolsonaro, seu entorno militar e áreas do chamado centrão constituem três camadas de um bolo solado. Desse arranjo pode sair (e tem saído) muita coisa em comum, desde tentativas de saques devastadores aos cofres da União, até tolerância para com ameaças à democracia e às eleições, passando por devastação ambiental, educacional, cultural e informacional, por metódica desconstrução institucional do Estado, seu aparelhamento e a sabotagem, pontual e difusa, de direitos constitucionais, inclusive supressão do direito à vida de centenas de milhares de brasileiros. Em suma, pode sair tudo, menos uma coalizão capaz de vencer eleições normais, em dois turnos. Políticos profissionais sabem disso e não ficam à espera do abraço de afogado do capitão.

José Eduardo Faria - O artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas e o “Poder Moderador”

Horizontes Democráticos / Estado da Arte

O presidente Jair Bolsonaro voltou a invocar o artigo 142 da Constituição, que trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, afirmando que ele confere aos militares um “poder moderador” para repor a lei e a ordem quando houver conflito entre os Poderes. “Nas mãos das Forças Armadas, a certeza da nossa liberdade e do apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação. Obrigado por existirem. Nós sabemos o que é bom e o que é justo para o nosso povo”, disse ele no dia 12 de agosto, numa solenidade de promoção de generais.

Bolsonaro defendeu reiteradamente essa tese no ano passado, principalmente depois de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional um de seus atos normativos. Na ocasião, o presidente da corte, Luiz Fux, o rebateu de pronto, esclarecendo que a leitura do artigo 142 feita pelo presidente da República é equivocada, em termos técnico-jurídicos. Por causa disso, Bolsonaro ampliou suas afrontas à corte, estimulando seus seguidores a fazerem o mesmo.

Agindo nessa linha, um grupo de 52 membros da Aeronáutica, 16 da Marinha e 10 do Exército – todos da reserva – publicou um manifesto acusando os ministros do STF de fazerem “uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade”. E um deputado, Marcio Labre (PSL-RJ), chegou a afirmar pelo YouTube que, “se as Forças Armadas decidirem que os senhores (ministros do STF) estão destituídos, os senhores estarão, porque o fuzil atira e a caneta não atira. A vida funciona assim, sempre funcionou. Quem manda no jogo é o dono do fuzil, não é a caneta do senhor Fux, nem do senhor Toffoli, nem do senhor Lewandowski, nem do senhor Gilmar Mendes. Um único movimento de tanque na sala dos senhores e os senhores saem algemados, destituídos, podem perder num instante o status que têm hoje”.

Deixando de lado a adulação de Bolsonaro aos novos generais, o palavrório dos oficiais de pijama e o golpismo desse parlamentar, a ideia de que o artigo 142 permite às Forças Armadas agirem como poder moderador de conflitos entre os poderes não procede, juridicamente. Segundo esse artigo, “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Luiz Carlos Azedo - Agosto em marcha

Correio Braziliense / Estado de Minas

Bolsonaro escala a crise como STF e aposta na deterioração das relações entre os Poderes. Ameaça dar um golpe de Estado

Riobaldo, o jagunço de Grande Sertão Veredas, a odisseia cabocla de Guimarães Rosa, dizia que “viver é muito perigoso”. Em agosto, na política, mais ainda. Para os políticos, com certa razão, trata-se de um mês aziago, porque crises e tragédias ocorreram nesta época do ano. “Comandante supremo das Forças Armadas”, como agora gosta de se apresentar, o presidente Jair Bolsonaro escala a crise com o Supremo Tribunal Federal (STF) e aposta na deterioração das relações entre os Poderes, com o claro propósito de impedir a realização das eleições, nas quais pode ser derrotado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ameaça dar um golpe de Estado.

Tudo pode acontecer em agosto. Em 1954, após voltar ao poder pelo voto, Getúlio Vargas sofria com pressões do Congresso. A oposição mais radical era da UDN, liderada por Carlos Lacerda, que sofreu um atentado na Rua dos Toneleiros, no Rio de Janeiro, no qual faleceu o major da Aeronáutica Rubens Vaz; Lacerda foi ferido na perna. As investigações apontaram Gregório Fortunato, chefe da guarda presidencial, como autor do crime. A situação se tornou insustentável. Getúlio acabou cometendo suicídio, com um tiro no peito, na madrugada de 24 de agosto.

Celso Lafer* - A Bíblia não é a Constituição

O Estado de S. Paulo

Não se pode ter a pretensão de, como juiz, assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus

 “Notável saber jurídico” e “reputação ilibada” são os critérios de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecidos pela Constituição. A sua indicação cabe ao presidente da República, mas a escolha só se efetiva depois de avaliação e aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal.

Os parâmetros constitucionais são explícitos. Não cabe abrir espaço para considerações a respeito da fé religiosa de um indicado. Não é critério que se coadune com o Direito brasileiro o ingrediente de ser “terrivelmente evangélico”. É, no entanto, o que o presidente aponta como uma faceta de sua escolha preferencial do nome de André Mendonça para o cargo.

Trata-se de um vício de origem no âmbito de um Estado de Direito, que consagra a objetividade do “governo das leis” e repele o idiossincrático de um “governo de homens”. Requer, assim, pronta refutação, pois o Brasil é um Estado laico desde a proclamação da República. Não é um Estado confessional, no âmbito do qual existam vínculos entre o poder político e uma religião.

Em nosso país, na linha da tradição constitucional americana, que inspirou Rui Barbosa, existe, como dizia Jefferson, um “wall of separation” entre o Estado e as religiões. Esse é o sentido do artigo 19 da Constituição. É por isso que a fé religiosa não é critério de escolha para cargos governamentais, muito especialmente o de ministro do STF, instituição que tem, no topo do Judiciário, a responsabilidade pela guarda da Constituição e de seus dispositivos, incluída a laicidade.

O que a mídia pensa: Editoriais

EDITORIAIS

O ‘poder moderador’ e o imoderado

O Estado de S. Paulo

O que Jair Bolsonaro supunha ser demonstração de poder serviu para escancarar os limites de sua autoridade imaginária

Diante dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e de oficiais-generais recém-promovidos, numa solenidade na quinta-feira passada, o presidente Jair Bolsonaro atribuiu às Forças Armadas a função de “poder moderador”.

Não foi a primeira vez que o presidente distorceu o papel institucional dos militares, mas a reiteração de tal deturpação neste momento tenso reforça a disposição de Bolsonaro de confrontar os que, no Judiciário, pretendem fazê-lo responder por atos que afrontam a democracia. E, como já está claro, o presidente se esforça com denodo para envolver as Forças Armadas em seus propósitos liberticidas.

Sendo um “poder moderador”, na visão de Bolsonaro, as Forças Armadas estariam acima dos Poderes constitucionais e, nessa condição, seriam irresponsáveis. Obviamente, não há nada disso na Constituição, como já declararam os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, quando tiveram que se posicionar acerca da excêntrica hermenêutica constitucional de Bolsonaro.

Desta vez, ao contrário do que sempre faz, o presidente não citou o artigo 142 da Constituição, segundo o qual as Forças Armadas são instituições nacionais “que se destinam à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” – o que, na leitura bolsonarista, significa que a manutenção da democracia depende dos militares.

Em seu discurso, contudo, Bolsonaro deixou claro que não considera as Forças Armadas um “poder moderador” no estilo do estabelecido pela Constituição de 1824, que dava ao imperador o “poder neutro” de velar pela “manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes políticos” (artigo 98). Não. O “poder moderador” que Bolsonaro quer ver exercido pelas Forças Armadas nada tem de neutro, pois o presidente disse esperar que o comando militar dê “apoio total às decisões do presidente para o bem de sua nação”.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?