segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Fernando Gabeira - Os tanques do nosso desencanto

O Globo

O tema da semana para mim foi o relatório do IPCC sobre aquecimento global. Desde 2005, quando houve a conferência de Gleneagles, na Escócia, aprendi que o momento em que chegaríamos a uma situação irreversível seria quando as grandes correntes marinhas fossem afetadas. Parece que chegamos lá.

Como discutir isso num país em que Bolsonaro é presidente? O tamanho do adversário nos entristece porque acaba rebaixando nossas possibilidades.

No momento em que soava o alarme do IPCC para a humanidade, e para o Brasil, uma vez que ainda somos parte dela, o país estava galvanizado por um desfile de artefatos fumegantes na Esplanada dos Ministérios.

Não há o que dizer numa república bananeira quando o presidente decide promover um desfile de tanques de guerra para pressionar o Congresso. Isso é Bolsonaro.

As Forças Armadas, no entanto, me preocupam. Elas não são obtusas como muitos às vezes as descrevem. Há tecnologia moderna no ITA, livros sobre guerra moderna são produzidos por oficiais, e até reflexões sobre direitos humanos e a Convenção de Genebra.

É verdade que o Brasil não tem muita experiência real de guerra, e isso tende, segundo alguns, a uma acomodação burocrática. Vá lá, mas ainda assim a burocracia não pode escapar de uma certa racionalidade.

Como explicar um desfile de tanques para entregar um convite ao presidente? É algo que poderia ser feito por e-mail, telegrama, ofício ou mesmo por uma pequena comissão.

Miguel de Almeida - A Igreja do Diabo

O Globo

O Malafaia, aquele que conversa quase sempre com o Bozo, em lugar de oferecer o ombro, poderia presenteá-lo com “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, lançado em 1884.

Numa daquelas noites tristes, o pastor leria a história para o amigo.

Seria um regalo inesperado. Algo assim como o Carluxo com tatuagem do Chico Buarque no torso.

Bozo, por certo, não tem a menor ideia de quem seja Machado de Assis. Mas, certeza, sabe tudo do Diabo, e vice-versa: “Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega”.

Machado antecipou em anos a bozofrenia brasileira. A baixa produtividade (“-5% + 4% = 9%”), o oportunista religioso e ainda a desumanidade popularizada a partir do curralzinho, sempre contrária à solidariedade humana: “Com efeito, o amor do próximo é um obstáculo grave (...), uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se deve dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo”.

(Antes de prosseguir na história, vale lembrar que Machado de Assis casou-se apenas uma vez — com dona Carolina, por 35 anos —, era católico praticante, mas sarcástico com os costumes da religião, profundo conhecedor das malandragens do brasileiro e conservador na política. Quando morreu, em 1908, seu féretro foi seguido nas ruas do Rio por milhares de pessoas. Ah, nunca foi comunista!).

Bruno Carazza* - Extorsão e traição

Valor Econômico

Distritão é a mais explícita chantagem, cujo preço sobe a cada ciclo eleitoral

A cada dois anos, um fantasma toma de assalto o Congresso Nacional e drena todas as atenções e energias: o distritão. Para evitar essa degeneração ainda maior de nosso sistema político, muito já se abriu mão, de aumentos bilionários nos fundos partidário e eleitoral ao enfraquecimento dos mecanismos de transparência partidária.

Nós, brasileiros, adoramos um eufemismo, e no caso do distritão o rotulamos de “bode na sala”. Mas passou da hora de darmos o nome certo às coisas: trata-se da mais explícita chantagem, cujo preço sobe a cada ciclo eleitoral. Neste ano, a extorsão atingiu seu ápice com as tentativas de aumentar o fundão para quase R$ 6 bilhões e a volta das coligações.

Alex Ribeiro - Biden deixa o FMI menos antiglobalista

Valor Econômico

Alocação de dinheiro a membros marca nova fase no organismo

O Brasil vai receber na semana que vem o equivalente a US$ 15,1 bilhões em moeda forte do Fundo Monetário Internacional (FMI) na alocação de recursos que o organismo está fazendo entre os seus membros. O dinheiro vai fazer pouca diferença para nós, já que as nossas reservas internacionais somam US$ 354,5 bilhões. Mas esse é um marco da mudança feita pelo presidente americano, Joe Biden, na relação com o FMI, que volta a ter uma visão de maior colaboração global.

A ideia de distribuir dinheiro entre os membros surgiu no ano passado, como uma resposta à crise da covid, que criou um aperto de liquidez entre os países mais pobres e aumentou a demanda de gastos em saúde. O Brasil não era um interessado direto na alocação de recursos, porque tem altas reservas e porque foi um dos beneficiados com uma linha de swap em dólares aberta pelo Federal Reserve (Fed, o BC americano). Ainda assim, o diretor-executivo do país, Afonso Bevilaqua, foi um dos advogados da proposta, assumindo o papel tradicional do país de defender as posições dos emergentes.

Ricardo Noblat - Cumplicidade dos militares estimula Bolsonaro a esticar a corda

Blog do Noblat / Metrópoles

Presidente quer aproveitar o 7 de setembro para encenar mais uma exibição de força

E se restar comprovado que Jair Bolsonaro escreveu a mensagem repassada por WhatsApp para um grupo de ministros, em que fala sobre a necessidade de um “contragolpe” e convoca apoiadores a se manifestarem no dia 7 de setembro, com o objetivo de mostrar que ele e as Forças Armadas têm apoio para uma ruptura institucional?

Seria o caso de abertura imediata de um processo de impeachment, algo que só debaixo de pau e pedra poderia ser arrancado do presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL). A quem o procurou na semana passada, Lira disse que, enquanto tiver R$ 11 bilhões do Orçamento para administrar, não mudará de posição.

O mais provável é que Bolsonaro negue a autoria da mensagem. No máximo, dirá que a repassou como costuma fazer com as que chamam particularmente sua atenção. O fato não deixará de ser menos grave por isso. E se somará a dezenas de outros que indicam sua opção de agir fora das quatro linhas da Constituição.

Eliézer Rizzo de Oliveira* - Bolsonaro ameaça a democracia

O Estado de S. Paulo

Paradoxo dos paradoxos: ele é o único ator político relevante a postular a luta armada!

Em janeiro passado, derrotado nos votos populares, Donald Trump intentou colocar tanques nas ruas de Washington. Não conseguiu, pois os principais chefes militares ficaram com a Constituição. Os partidários do presidente que invadiram o Capitólio prestam contas à Justiça. Joe Biden foi confirmado pelo Congresso, tornou-se presidente dos Estados Unidos e Trump se retirou com desonra e sem admitir a derrota eleitoral e judicial. Bolsonaro não deixou por menos ao dizer que a eleição americana foi fraudada e que poderá haver fraude eleitoral e violência no Brasil se não for adotada a impressão do voto em urna.

A marca do presidente Jair Bolsonaro é a ameaça contra a democracia. Diz contar com as Forças Armadas para tudo. Generais do núcleo do poder falam em romper a corda. Um general me disse, acerca dessa jactância: “Não fui consultado, falam por si mesmos”.

10 de agosto de 2021 é a data da mais contundente ameaça militar contra a democracia na vigência da Constituição de 1988: Bolsonaro colocou tanques nas ruas. Ou melhor, a Esplanada dos Ministérios foi palco do amedrontador desfile de tanques da Marinha, quando da votação da PEC, de interesse e inspiração de Bolsonaro, que adotaria a impressão dos votos registrados em urnas eletrônicas. Tendo consigo o ministro da Defesa e os comandantes das três Forças, Bolsonaro foi adulado com a inadequada entrega de um convite pelo comandante da Marinha, que poderia tê-lo feito discretamente, como convém em circunstâncias tão tensas e perigosas. As explicações dos comandantes foram constrangedoras, com argumentos inaceitáveis. Fala-se até que o Exército foi apanhado de surpresa com a decisão do presidente, do ministro da Defesa e da Marinha.

Denis Lerrer Rosenfield* - Um país desgovernado

O Estado de S. Paulo

País está maduro para uma alternativa que se distancie do petismo e do bolsonarismo

Falta governo. Quanto mais vocifera o presidente Bolsonaro, mais mostra ausência de rumo. O seu tão propalado projeto de voto impresso foi claramente rejeitado pela Câmara dos Deputados, apesar de sua pressão e da liberação de mais de R$ 1 bilhão alguns dias antes da votação. Escancarou mais uma vez o “toma lá dá cá”, contra o qual dizia se insurgir quando de sua eleição. A contradição é evidente, só não aparece para quem não quer ver, isto é, a bolha bolsonarista, que só olha para dentro de si. Vivem em outro mundo, alheios às agruras de uma vacinação atrasada, a “remédios” milagrosos que só doença e morte causam, ao desemprego, à miséria e carência de perspectivas.

O seu compromisso com a palavra dada desapareceu mais uma vez ao deixar o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arthur Lira, literalmente vendido. Ficou pendurado na ponta de um pincel. Tinha se comprometido a enterrar o assunto uma vez votada a questão em pauta. O que fez? Retomou a sua verborreia golpista de que sem o seu “voto” impresso, isto é, dele no sentido estrito, não haverá eleições no ano que vem, ou elas não terão validade. O ambiente de confronto é mantido porque, afinal, é o que unicamente lhe interessa, porque nada mais tem a esperar. Sem o conflito lhe faltaria o ar que respira.

Numa última cartada antes da votação, recorreu à Marinha para lhe entregar, num desfile militar, um “convite” para participar de uma operação militar na cidade de Formosa. Poderia ter sido feito por e-mail ou por um estafeta! O convite inusitado e despropositado só se entende se for para participar do processo de instabilização das instituições democráticas. A Marinha é uma instituição de Estado e não deveria ter-se prestado a uma ação ideológica, governamental. Saiu claramente de sua missão. A fumaça de seus velhos tanques apenas exibe que sua liderança não consegue ver com o seu olhar esfumaçado.

Marcus André Melo* - Por que temos tantos partidos?

Folha de S. Paulo

A proliferação de partidos não é um problema moral, mas institucional

A ciência política já identificou os fatores que determinam o número efetivo de partidos em um sistema político (Nepp). O principal é a representação proporcional (RP), o modelo mais popular e adotado em 94 países (o voto único em distrito uninominal, “voto distrital”, é adotado em 68).

Mas o efeito da RP é condicional a outros fatores. O decisivo é a magnitude do distrito. No Brasil, os distritos são os estados, e ela varia de 8 a 70 (a mediana é 17). Tudo o mais constante, adotado o distritão, por exemplo, o número de partidos no sistema não se alteraria, como mostrou Gary Cox (Universidade Stanford).

As democracias nas quais o distrito é o próprio país —Holanda, Dinamarca ou Israel— têm o número mais elevado de partidos do planeta. No plano oposto está o Chile, que adotou a RP, mas com magnitude 2, de 1989 a 2015. O Nepp no Brasil não tem paralelo. Uma forma de reduzir o tamanho do distrito seria através de modelos mistos, presentes em 37 países, nos quais os distritos poderiam cair pela metade.

Catarina Rochamonte - Bob Jeff, o herói bolsonarista

Folha de S. Paulo

Clamar pela liberdade de Bob Jeff não é mais patético do que gritar 'Lula livre'

No âmbito do inquérito das milícias digitais, aberto pelo ministro Alexandre de Moraes, deu-se a recente prisão do caricato Roberto Jefferson. O ex-deputado, vale lembrar, fez parte da tropa de choque de Collor quando o então presidente sofria processo de impeachment e tinha o PT como verdugo no Congresso. Esse fato não o impediu de, anos depois, levar seu partido para a base de apoio do governo Lula, ajudando-o a submeter o Parlamento por meio do Mensalão, que ele mesmo, posteriormente, delatou.

Na recente ordem de prisão decretada por Moraes, elencam-se mais de uma dezena de possíveis crimes de Jefferson, que, em seus vídeos, ameaça, calunia, difama, insulta, incita à violência e prega insurgência armada, ultrapassando o limite do que lhe é permitido pela liberdade de expressão.

Alon Feuerwerker - À espera do desempate

Revista Veja

A incógnita é saber o que poderá inverter as tendências

O nó da conjuntura está na fraqueza das forças. Nem a oposição a Jair Bolsonaro tem até agora músculos para remover o presidente ou tirá-lo do segundo turno, nem ele parece reunir reservas no momento para transmitir a seus potenciais apoiadores a segurança de que vai derrotar Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Daí o cenário ser, como descreve a literatura política, um “empate catastrófico”, equilíbrio crônico de forças (ou fraquezas) que produz degradação progressiva. Uma evidência pode ser vista nas reformas eleitoral e tributária.

Na teoria, o palco para o desempate será a eleição. Bolsonaro luta para manter coeso o núcleo ideológico da sua base, com as bandeiras já bem conhecidas. É seu passaporte para o segundo turno. Mas o movimento principal é buscar recursos orçamentários que turbinem programas sociais. Nem que tenha de aumentar impostos. O candidato Jair Bolsonaro era crítico de aumentar impostos e de as pessoas dependerem de governos. Mas na hora do aperto cresce a tentação de engatar o vagão das ideias na locomotiva das necessidades.

No ano passado, o pagamento do auxílio emergencial de 600 reais coincidiu com uma melhora na avaliação do presidente. Agora, a retomada daquele suporte financeiro, mas com menos da metade do valor e para menos gente, não parece estar ajudando a atenuar a dificuldade política. É possível que o novo Bolsa Família mude isso, mas será preciso esperar para ver. Até porque a inflação anda turbinada, especialmente nas compras do povão.

José Casado - Bolsonaro reacende debate sobre o próprio impeachment

Revista Veja

Presidente-candidato programa escalada de excentricidades até 7 de setembro, comandando manifestações nas ruas articuladas com paralisação de caminhoneiros

Arrastado para a realidade de uma inflação em alta corroendo a renda dos eleitores (80% pobres), Jair Bolsonaro luta para se manter refugiado no mundo paralelo onde atravessou a primeira metade do mandato.

Se mostra incapaz de reagir de forma objetiva e inovadora ao declínio de suas perspectivas de continuidade no poder, via reeleição, atestado em cada nova pesquisa recebida no Palácio do Planalto. Prisioneiro do pandemônio de erros na primeira metade do mandato, que levaram ao descontrole da pandemia, parece empenhado em dificultar ainda mais a própria recuperação.

Programa uma escalada de excentricidades até 7 de setembro. O governo tem deixado claro que não se importa com o bicentenário da Independência, em 2022, mas Bolsonaro quer marcar este ano 199 da libertação do colonialismo lusitano comandando manifestações nas ruas das maiores cidades, a partir de São Paulo, articulada com uma paralisação incentivada de caminhoneiros.

Desvia energia governamental do problema do avanço inflacionário, persistente e disseminado, de 9,85% nos preços ao consumidor em julho, para se dedicar à organização de um protesto contra o espectro do “comunismo” nos partidos políticos, na imprensa, nos botequins, nas igrejas, no Congresso, no Judiciário — e até nas Forças Armadas, se Exército, Marinha e Aeronáutica não estiverem a serviço dele, para ele e por ele.

É o seu plano eleitoral. Ele prevê aumentar progressivamente a intensidade de ações extravagantes, e polêmicas, como a de ontem: “Na próxima semana, levarei ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, um pedido para que instaure um processo [contra os juízes do Supremo Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes] de acordo com o art. 52 da Constituição Federal” — anunciou.

A senadora Simone Tebet (MDB-MS) retrucou numa advertência, com fina ironia: “Presidente vai mesmo pedir ao Senado o impeachment de ministros do STF? Quem pede pra bater no ‘Chico’, que mora no Inciso II, artigo 52, da CF, se esquece de que o ‘Francisco’ habita o Inciso I, do mesmo endereço.”

Murillo de Aragão - Nove meses para a decisão

Revista Veja

A terceira via cresce com força nas pesquisas

Com a intensificação de sua guerra institucional contra o poder Judiciário, o governo Bolsonaro pode ter entrado no modo “autodestruição”. Pesquisas já indicam um relevante abandono da intenção de voto no presidente em 2022 por parte dos que não são bolsonaristas “raiz”.

E isso se confirma a partir de dois fenômenos crescentes: relativizar a era Lula (PT) e seus escândalos; e considerar que o presidente Jair Bolsonaro é um risco à economia e às instituições por causa de sua imprevisibilidade, seu temperamento e a vocação para criar confusão. Na prática, ele ainda pode reverter as tendências e caminhar para uma reeleição cujo cenário, até um passado recente, era o predominante.

Os indícios, contudo, não apontam nessa direção. Quando seus aliados pedem que ele se acalme, ele dobra a aposta. Quando a aposta dobrada causa consternação, ele prossegue dobrando a meta. No seu entorno já há quem avalie que se trata de caso perdido e que cada um deve começar a pensar em si mesmo.

Olhando a cena institucional, dois protagonistas têm planos para 2023 que seriam facilitados com a reeleição de Bolsonaro. Mas que não dependem disso. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, que trabalha para se manter no cargo em 2023 e que, com a sua incontestável liderança, será, caso reeleito deputado, o amplo favorito. E Ciro Nogueira (PP-PI), que tem a chance de presidir o Senado pela capacidade de articulação e pelo poder que detém a partir da Casa Civil, poderá construir uma base eleitoral para si.

Entrevista| Ex-presidente chileno Ricardo Lagos: ‘Ausência do Brasil deixa América Latina mais desintegrada do que nunca’

Decisão do governo Bolsonaro de deixar fórum regional e ausência de articulações amplas em temas como a pandemia e o clima deixam os latino-americanos sem voz global, afirma líder ao GLOBO

Janaína Figueiredo / O Globo

Os chefes de Estado da América Latina estão em falta em matéria de esforços pela integração regional. O recado foi dado pelo ex-presidente do Chile Ricardo Lagos (2000-2006) em entrevista ao GLOBO, na qual lamentou que a região esteja mais desintegrada do que nunca e, em consequência, excluída de grandes debates globais. “Precisamos ter uma voz comum para sermos escutados, e não estamos fazendo as coisas bem”, disse Lagos, que frisou o impacto negativo para as articulações regionais da saída do Brasil da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), anunciada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2020. Aos 83 anos, o ex-presidente, do Partido Socialista, elogiou o processo de mudanças políticas em seu país e disse esperar que o Chile passe a ter “uma Constituição adequada às necessidades de hoje”.

Em artigo recente, o senhor fala em carência de uma política externa regional e menciona a ausência do Brasil da Celac...

A região nunca esteve mais desintegrada do que está hoje. É difícil pensar, olhando para trás, em que momento tivemos a dificuldade que temos hoje de nos expressarmos conjuntamente sobre temas comuns. A pandemia é a terceira grande crise do século XXI. A primeira foi a desencadeada pelo atentado às Torres Gêmeas e suas consequências. Sabíamos onde devíamos discutir, no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A segunda foi a crise financeira de 2008, e naquele momento houve uma resposta. O presidente George W. Bush convidou chefes de Estado a Washington e nasceu o G-20, lá estavam Brasil, México e Argentina. A região entendeu que, se teríamos reuniões presidenciais ou de ministros da Fazenda, devíamos ter reuniões prévias entre os latino-americanos para que esses três países fossem uma espécie de representação da região. Era natural, conversávamos entre nós. Quando falamos de política externa, estamos falando dos interesses concretos de cada país. É preciso coordenar os interesses de cada país e ter consensos na região.

Mirtes Cordeiro* - Crescem as agressões contra crianças e adolescentes na pandemia

“Dar palmada é crime, ignorância e covardia” (Ruth de Aquino)

Conversando com uma jovem de 22 anos, mãe de sua primeira filha de um ano e seis meses, de repente ela retirou a sandália do pé e bateu na mão da criança, porque a menina encontrou no botão do fogão, um objeto para brincadeira e conhecimento. Tomei um susto. Fui veemente na reprovação ao ato. A criança chorou… a mãe disse que batia para que a criança não lhe bata na cara quando estiver adulta…

Na verdade, um ato corriqueiro praticado por muitas mães – a maioria que cuida -, mas que pode trazer problemas irreversíveis para a criança durante sua vida. Pode trazer também problemas para a mãe, tão jovem, com relação ao seu desenvolvimento psicológico na relação com a educação e o cuidado com sua filha e consigo própria.

Durante a pandemia aumentaram as agressões às crianças e aos adolescentes em nosso país. É o que falam especialistas e órgãos que monitoram a violência doméstica. No entanto, sabe-se também que existe um problema grave de subnotificação com relação a essa questão. Especialistas como pediatras, psicólogos, professores e outros, sabem que uma criança que sofre agressão pode conviver com o medo, se apresentar introvertida e manifestar vários tipos de problemas que repercutem em seu organismo pela vida inteira. A pior delas é o trauma psíquico.

Segundo Paulo Endo, psicanalista e professor, os casos de violência podem deixar resultados traumáticos e profundas feridas psíquicas e que “custam muito para chegar a uma atenuação, resultando, então, na impossibilidade de cuidar de si, da própria vida, de estabelecer relações com seu futuro, comprometendo o desejo de viver”. (Jornal da USP).

Ana Cristina Rosa - Negritude é motivo de suspeição?

Folha de S. Paulo

Difícil encontrar uma pessoa negra que não tenha sido vigiada em uma loja

Difícil encontrar uma pessoa negra que não tenha sido vigiada ou seguida dentro de uma loja, de um shopping ou de um supermercado no país. Isso vale, inclusive, para as crianças. A sensação de mal-estar por ser observada enquanto caminha pelos corredores é coisa que quem é mais atenta percebe desde cedo.

Por incrível que pareça, para muita gente no Brasil a negritude é motivo de suspeição. Não fosse essa uma verdade, Luiz Carlos da Silva, um homem negro, não teria tido de se despir, ficando apenas de cuecas diante do público, para provar que não havia furtado nada do supermercado Assaí, em Limeira, este mês.

Nem sei o que é mais assustador: se o motivo da abordagem dos seguranças —transitar pelos corredores e sair sem comprar nada; ou o da reação do cliente— despir-se na entrada do mercado por medo de ser levado para alguma peça escondida onde possíveis agressões não poderiam ser registradas por câmeras ou percebidas por terceiros.

O que a mídia pensa: Editoriais

EDITORIAIS

Apaziguamento e pusilanimidade

O Estado de S. Paulo

Quem for indulgente com Bolsonaro será visto como cúmplice pusilânime do golpismo bolsonarista

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), disse ao Estado que o País deve “se acostumar” ao comportamento do presidente Jair Bolsonaro. “O presidente Bolsonaro é o presidente Bolsonaro. Precisamos nos acostumar com isso. Já é presidente há dois anos e meio, e todo mundo sabe o jeito dele. Ele reage. Está tudo dentro do esperado que fosse. Não consigo ver como isso estaria fora do padrão de comportamento dele”, declarou o deputado governista.

Não se pode dizer que Ricardo Barros está errado ao dizer que “está tudo dentro do esperado que fosse” e que nada do que Bolsonaro faz desde o dia em que tomou posse como presidente “estaria fora do padrão de comportamento dele”.

Trata-se de uma verdade muito inconveniente, especialmente para quem elegeu Bolsonaro julgando que, uma vez na cadeira presidencial, o político que ganhou notoriedade desafiando o decoro, a decência e a democracia fosse se emendar ou se conter, em nome da governabilidade.

Bolsonaro nunca demonstrou disposição de se adequar à cadeira presidencial. Julgou ter sido eleito para destruir, como ele mesmo admitiu em infame evento com extremistas de direita nos Estados Unidos pouco depois de ter tomado posse. Na visão de quem hostiliza a política e considera que democracia representativa é instrumento de um complô de minorias esquerdistas interessadas em destruir os valores da família e da pátria, Bolsonaro julgava ser o homem certo, na hora certa.

Assim, faz todo sentido que, para os bolsonaristas empedernidos, não era Bolsonaro quem tinha que se adequar ao País e às suas instituições democráticas, mas sim o Brasil que, nas palavras do líder do governo na Câmara, deveria “se adequar” a Bolsonaro. Para essa gente, sua eleição significava fazer tábula rasa da democracia, aparelhar o Estado para implantar uma agenda obscurantista e, de quebra, ter liberdade para delinquir sem responder por isso.

Poesia | Carlos Pena Filho - A palavra

Navegador de bruma e de incerteza,
Humilde me convoco e visto audácia
E te procuro em mares de silêncio
Onde, precisa e límpida, resides.

Frágil, sempre me perco, pois retenho
Em minhas mãos desconcertados rumos
E vagos instrumentos de procura
Que, de longínquos, pouco me auxiliam.

Por ver que és claridade e superfície,
Desprendo-me do ouro do meu sangue
E da ferrugem simples dos meus ossos,
E te aguardo com loucos estandartes
Coloridos por festas e batalhas.