segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Carlos Pereira – Amarras da equidade

O Estado de S. Paulo

Orçamento secreto e execução igualitária de emendas quebram o presidencialismo de coalizão

O presidencialismo multipartidário requer “moedas de troca” entre o Executivo e o Legislativo para alcançar funcionalidade. Um presidente é incapaz de construir e manter uma coalizão majoritária sem uma “caixa de ferramentas” sob sua inteira discricionariedade. A execução de emendas parlamentares é uma das principais ferramentas desse jogo, já que gera governabilidade com baixa interferência em políticas de perfil universal.

Esse jogo de trocas estava em equilíbrio até o governo Dilma. Como consequência da má gerência de suas coalizões e de sua fragilidade política no processo de impeachment, Dilma preferiu “perder os anéis para preservar os dedos”, ao aceitar tornar impositivas as emendas individuais. Já Temer, sob ameaça de dois pedidos de impeachment, permitiu que as emendas coletivas também se tornassem impositivas.

A obrigatoriedade na execução das emendas individuais e coletivas, em vez de ter sido um avanço nas relações entre Executivo e Legislativo, engessou o jogo e o tornou mais caro. No momento em que os legisladores perceberam que não precisavam mais votar de forma consistente com o Executivo para que suas emendas fossem executadas, o presidente teve de encontrar moedas alternativas de recompensa.

‘O presidente Jair Bolsonaro é nocivo à economia do Brasil’

The Economist / O Estado de S. Paulo

Ímpeto por reformas deu lugar à corrida por dinheiro para comprar apoio e popularidade

Em setembro de 2019 Paulo Guedes, ministro da Economia do Brasil, disse ao Congresso que poderia “fazer história” mantendo o Orçamento sob controle, acrescentando que “a classe política não deveria correr atrás dos ministros, implorando por dinheiro”. Agora, Guedes está apoiando uma dissimulada tentativa do governo de contornar o limite constitucional para os gastos públicos estabelecido em 2016, que foi um passo crucial para endireitar as finanças do país. Ele e Jair Bolsonaro, o presidente, conduzem o país não apenas a um retorno à incontinência fiscal, como também a outras mazelas econômicos que têm castigado o Brasil: aumento da inflação, altas taxas de juros e baixo crescimento. E as travessuras orçamentárias, por sua vez, criaram incerteza sobre o futuro do principal programa social do país.

Nas eleições de 2018, a aliança de Bolsonaro com Guedes, economista do livre mercado, contribuiu muito para persuadir empresários a apoiarem um ex-oficial do exército de extrema direita que nunca antes havia mostrado interesse pela economia liberal. Guedes prometeu uma reforma radical do inchado e ineficiente Estado brasileiro. Mas essa promessa resultou apenas em alguma economia no setor previdenciário, autonomia legal para o Banco Central e pequenas simplificações regulatórias. Agora o ímpeto por reformas deu lugar à corrida de Bolsonaro por dinheiro para comprar apoio político e popularidade.

Marcus André Melo* - Orçamento de rabo curto

Folha de S. Paulo

O orçamento secreto restaura discricionariedade do executivo no processo orçamentário

Já escrevi sobre o Orçamento rabilongo da República Velha. O apelido deveu-se à longa cauda de emendas estranhas à matéria que a lei orçamentária continha. Mas o que é mais relevante não é apenas a exclusividade ou pureza do orçamento que não deve conter matéria estranha às finanças públicas. O que escapou a muitos analistas é que o orçamento expressava uma certa impotência do executivo face ao legislativo. O atual protagonismo do legislativo sugere que estaríamos de volta ao Orçamento rabilongo, mas se trata do contrário.

Antes da reforma constitucional de 1926, o presidente detinha apenas a prerrogativa do veto total: ou vetava a lei orçamentária in totum, ou a aceitava, o que o enfraquecia. O imbróglio das emendas de relator aponta para algo bem distinto: o rabo curto do orçamento, sua intransparência. Com elas, deparamo-nos com uma espécie de restauração do status quo criado pós 1926, e que vigiu até a introdução do orçamento impositivo (EC 86/2015) e EC 100/2019).

Celso Rocha de Barros - Moro, a esta altura do campeonato?

Folha de S. Paulo

O 'punitivismo' de que precisamos agora, depois dos crimes da pandemia, é outro

Se Sergio Moro tivesse se candidatado a presidente em 2018, teria sido eleito com a maior votação da história. Parece um grande feito até você lembrar quem foi o sujeito que ganhou. O ano de 2018 não foi um pico glorioso na história da inteligência brasileira.

Agora Moro tenta o que Luciano Huck desistiu de fazer: concorrer em 2022 como se fosse 2018. Não é fácil.

O candidato Moro é um time que tem chances de vencer o campeonato, mas não depende dos próprios resultados. Com alguma sorte e habilidade, talvez cruze a linha dos 10% de intenção de voto com o que sobrou de eleitorado lava-jatista e uma parte do ex-bolsonarismo.

Daí em diante, torceria para que ninguém mais decolasse, Bolsonaro despencasse e o voto útil começasse a chegar. Chegando no segundo turno, ainda precisaria que Lula estivesse tão isolado quanto o PT estava em 2018. Nada disso é impossível, mas, para dar certo, os adversários de Moro precisam tropeçar.

Catarina Rochamonte - O impacto Sergio Moro

Folha de S. Paulo

Ex-juiz apresentou um belo esboço de projeto para o Brasil

A solenidade de filiação de Sergio Moro ao Podemos, indicando possível candidatura a presidente, estremeceu o cenário político; especialmente por causa do discurso do novo presidenciável, que surpreendeu a todos, entusiasmando os adeptos e desnorteando os adversários. Indo além da questão do combate à corrupção, Moro apresentou um belo esboço de projeto para o Brasil, cuja efetiva construção irá requerer a adesão de muitas mãos.

A entrada de Moro no xadrez eleitoral despertou a esperança de uns e atiçou o ódio de outros. O amplo arco de interesses em defesa da impunidade que atira flechas no ex-juiz vai desde um ministro do STF, Gilmar Mendes, até políticos condenados por corrupção, como Eduardo Cunha.

Ruy Castro - Boas falsas histórias

Folha de S. Paulo

Garrincha não chamava ninguém de João e Dolores não escreveu com batom num lenço de papel

Diz a lenda que, ao passar por Tom Jobim ao piano, Dolores Duran perguntou-lhe que beleza era aquela que ele estava tocando. "É uma canção em que estou trabalhando", disse Tom. Daí Dolores teria tirado da bolsa seu batom e escrito, de primeira, num lenço de papel: "Ah, você está vendo só/ Do jeito que eu fiquei/ E que tudo ficou...". Ok, agora tente você escrever não uma obra-prima do samba-canção, como "Por causa de você", mas qualquer coisa com batom num lenço de papel. Na vida real, Dolores escreveu a letra em casa, no maior sossego, talvez com uma Parker.

Outra história é a de que Tom e Vinicius de Moraes, bebendo num botequim em Ipanema, viram uma moça passar e ali mesmo fizeram "Garota de Ipanema". Seria assim tão fácil? Além disso, era proibido tocar violão no Veloso, como o botequim então se chamava. A moça passou mesmo por lá, mas Tom fez a música ao piano em seu apartamento e Vinicius, a letra, na casa de Lucinha Proença, sua mulher na época, em Petrópolis. Levaram um mês para terminá-la.

Também não é verdade que o violonista Baden Powell, ao receber um convite para tocar na Casa Branca, em Washington, em 1963, tivesse dito: "Não posso. Nesse dia tenho show no Zum-Zum". Imagine alguém recusar a Casa Branca pelo Zum-Zum, uma humilde boate em Copacabana —nem o desligado Baden faria isso. Para completar, os fatos não batem: os convites da Casa Branca eram feitos com meses de antecedência, e os shows do Zum-Zum, decididos de véspera.

Fernando Gabeira - Um país do passado

O Globo

Umas coisas estranhas estão acontecendo no Brasil de hoje, e tenho até certa dificuldade de descrevê-las. Em muitos artigos, renascem as citações de alguns grandes intérpretes do país, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Victor Nunes Leal.

São quase sempre destinadas a enfatizar os velhos defeitos do Brasil que, apesar dos tempos, reaparecem com força: o conluio das elites políticas para transformar o Tesouro nacional em patrimônio de alguns, a associação com as elites regionais para preservar seu poder.

Parece que o Brasil ficou velho de repente e que não se deu conta. A jovem democracia se olha no espelho como Dorian Gray, personagem de Oscar Wilde, que vê no retrato as deformações da idade, de seu súbito envelhecimento. É tão perturbador que, às vezes, me pergunto se é apenas o velho ou o eterno Brasil que se revela diante de nós.

O fantástico exemplo do orçamento secreto é um sintoma de como viajamos para o passado. Foi denunciado há alguns meses, mas só agora as instituições brasileiras se dão conta de que quase R$ 20 bilhões de dinheiro público são gastos sem a necessária transparência. Como foi possível um mecanismo tão perverso durar tanto tempo?

Demétrio Magnoli - Xi, a lei da História

O Globo

‘Quem controla o passado controla o futuro’, citou Winston, obediente, como queria O’Brien, antes de completar: “Quem controla o presente controla o passado”. Xi Jinping deve ter lido Orwell, pois o lema do Partido Interno de 1984 inspirou o 6º Pleno do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC). O PCC, no seu centésimo aniversário, ganhou uma história oficial com força de lei. Torna-se, por meio dela, uma entidade perfeita.

Xi não deixa a China e não recebe nenhum líder estrangeiro desde janeiro de 2020,quando a pandemia açoitava Wuhan. O líder chinês não compareceu ao G20 ou à COP26. Sua prioridade absoluta era a missão historiográfica agora concluída.

Sucesso: ele inscreveu na pedra duas “verdades” invioláveis. De um lado, foi nomeado Líder Essencial, numa galeria composta somente de mais dois personagens: Mao Tsé-Tung, o pai fundador da China comunista, e seu rival e sucessor, Deng Xiaoping, que deflagrou a abertura econômica no anoitecer da década de 1970. De outro, apagou a crítica a Mao escrita em tinta vermelha na História oficial prévia, produzida por Deng.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A República resiste

O Estado de S. Paulo

Apesar da ofensiva bolsonarista a vários princípios da República, observa-se uma notável capacidade desse regime de se manter firme como ideia e realização

Perante bolsonarismo e desinformação, instituições republicanas reagem.

Nos últimos anos, têm sido frequentes as violações ao princípio da igualdade de todos perante a lei. Também se verifica a deterioração do chamado regime de leis, com tentativas de exercício do poder estatal além dos limites institucionais, isto é, além dos limites republicanos.

Seria ingênua a pretensão de que não haja ameaças contra o regime republicano. O poder sempre tende a se expandir. A atuação humana produz invariavelmente algum nível de atrito com o princípio da igualdade. Por isso mesmo, a República e seus princípios estruturantes são tão importantes. Não são ornamentos, mas uma necessidade.

De toda forma, nos últimos anos, observam-se dois fenômenos especialmente preocupantes contra a República. O primeiro refere-se ao governo federal. Desde que chegou ao Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro afronta o regime republicano. Não tolera a liberdade de imprensa. Não consente que as instituições funcionem de maneira independente, dentro de suas respectivas atribuições.

Não admite plena vigência ao princípio da separação dos Poderes.

Não é mera questão de estilo pessoal. Por exemplo, causa dano à República que o presidente da República trate toda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contrária a seus interesses como uma afronta à sua pessoa ou uma violação das prerrogativas do Executivo. Agindo assim, Jair Bolsonaro transforma a atuação do Judiciário, institucional e dentro das regras do jogo, em suposto abuso da vontade popular e da Constituição, gerando enorme confusão. Poucas vezes na história do País viu-se uma decisão do STF pacífica e perfeitamente aderente ao texto constitucional – como a que reconheceu a competência compartilhada dos três níveis federativos a respeito da saúde pública – ser tão insistentemente distorcida pelo Executivo federal.

Poesia | Vinicius de Moraes - Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.