sábado, 4 de dezembro de 2021

Cristovam Buarque* - Conflitos Evitáveis

Blog do Noblat  / Metrópoles

O Brasil corre o risco de ter suas divisões transformadas em conflitos, porque antes elas eram disfarçadas

A recente comemoração pela escolha do novo ministro do STF, tratada como vitória dos evangélicos, levanta temor de uma espécie de disputa religiosa no Brasil. Este temor surge também quando se percebe a luta de negros por seus direitos, ou de gays querendo casamento legal, os pobres querendo acesso a serviços públicos de qualidade reservados aos ricos. Estes conflitos afloraram depois de séculos camuflados, escamoteados, colocados debaixo do tapete. Até recentemente, “os negros sabiam seus lugares”, “os evangélicos aceitavam o Estado com viés católico”, os “gays ficavam no armário”, e “os pobres acomodados diante da riqueza dos outros”. Agora, cada vez que estes grupos se manifestam querendo cotas em universidades, vaga no STF, legalizar relações afetivas ou buscando auxílio, surgem vozes dizendo que o Brasil nunca teve racismo, que homossexuais não eram perseguidos, que os pobres não eram sacrificados e que os evangélicos ferem querem dominar o Estado.

Ascânio Seleme - O último cargo de Bolsonaro

O Globo

Após aprovação de Mendonça para o STF, vamos saber se o PGR Augusto Aras e João Otávio de Noronha, do STJ, eram mesmo leais ao presidente ou apenas atendiam à sua própria ambição

Terminou na quarta-feira com a aprovação de André Mendonça o poder inabalável do presidente Jair Bolsonaro sobre aspirantes a uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Seus aguerridos aliados Augusto Aras, procurador-geral da República, e João Otávio de Noronha, ministro do Superior Tribunal de Justiça, podem se julgar livres a partir de agora, a menos que acreditem em Papai Noel ou na reeleição de Bolsonaro. Vamos saber em breve se os dois homens eram mesmo leais e confiavam cegamente no presidente, a ponto de colocarem a mão no fogo por ele, ou apenas atendiam à sua própria ambição.

Nenhum cenário é bom para eles. Mas, suspender a blindagem de Bolsonaro e de seus filhos, tarefa que Aras e Noronha vêm cumprindo com excelentes resultados até aqui, pelo menos os dignificaria diante do Brasil e dos brasileiros. Ficaria provado que antes agiam de olho no cargo que acabou com aprovação de Mendonça, mas aos dois sempre restaria a desculpa de que é melhor corrigir o rumo do que seguir errando em direção ao precipício.

Por isso, de modo a manter o controle sobre potenciais aspirantes ao posto, para Bolsonaro seria melhor dispor do cargo do que efetivamente preenchê-lo. Talvez tenha sido esta a razão da displicência do presidente em defender no Congresso o seu indicado. Na verdade, Bolsonaro ganharia se Davi Alcolumbre mantivesse Mendonça em banho-maria por mais alguns meses. Se adiasse outras duas ou três semanas, a sabatina do indicado só iria ocorrer depois do recesso. Enquanto isso, os candidatos à vaga que ainda sonhavam com a desistência de Mendonça ou um recuo do presidente permaneceriam de mãos amarradas. E leais.

Carlos Góes - Ciência e política pública

O Globo

O papel do cientista é ajudar a desenhar a melhor política pública possível para alcançar o objetivo que foi escolhido pela sociedade

A ideia de políticas públicas baseadas em evidências é revolucionária. Em um mundo complexo e de informação imperfeita, a alternativa à ciência para o desenho das políticas é, na melhor das hipóteses, a experiência prática anedotal do servidor público ou políticos; ou, na pior delas, uma captura da regulação por grupos de interesse.

Em ambientes de maior incerteza, como a pandemia que atravessamos atualmente, usar a melhor evidência disponível, de forma contínua, torna-se ainda mais necessário. Mas há dois grandes desafios nesse objetivo.

O primeiro deles é que pouca gente de fato está disposta a mudar de opinião com base em evidências científicas. Em seu livro “A Mente Moralista” (Ed. Alta Cult, 2020), o psicólogo social da Universidade de Nova York Jonathan Haidt tenta explicar o porquê.

Haidt argumenta que, em geral, as pessoas escolhem os grupos com os quais se identificam com base em semelhanças morais e somente depois racionalizam as posições consideradas prioritárias por seu grupo.

Oscar Vilhena Vieira* - Marcha sobre o Supremo

Folha de S. Paulo

Sobrevivência da democracia está associada à lealdade dos atores políticos às instituições constitucionais

Ao longo de três décadas de democracia constitucional, do conturbado governo Collor à controvertida prisão do ex-presidente Lula, fomos nos condicionando à ideia de que decisões judiciais, ainda que contestáveis, são para ser cumpridas, especialmente quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Essa premissa básica do Estado democrático de direito, que designa que ninguém está acima da lei, começou a sofrer um perigoso processo de erosão em 2018, quando o então comandante do Exército sentiu-se à vontade para ameaçar o Supremo, caso concedesse um habeas corpus que permitiria ao ex-presidente Lula participar do pleito eleitoral.

A postura sistematicamente afrontosa do presidente Bolsonaro ao STF tem incentivado o desrespeito à jurisdição constitucional, não apenas por parte do "guarda da esquina", que se arvora a intimidar professores e jornalistas ou prender aqueles que se manifestam contra o presidente, mas também por instituições que deveriam ter clareza de suas obrigações em relação às regras do jogo democrático. Lembrando sempre que a sobrevivência da democracia está intimamente associada à lealdade dos atores políticos às instituições constitucionais.

Demétrio Magnoli – Catecismo da purificação

Folha de S. Paulo

Na busca pela purificação coletiva, novos evangelistas só confiam na própria consciência

José De Paula Ramos Jr., professor do curso de editoração da ECA-USP, dedica-se a (re)descobrir e oferecer ao público textos literários de qualidade que foram esquecidos pelo mercado editorial.

Na disciplina que ministra, orienta o trabalho dos alunos na edição dessas obras para publicação pela parceria Com-Arte/Edusp, na coleção Reserva Literária. Contudo, o romance que selecionou no semestre em curso não chegará às livrarias. Motivo: os alunos julgaram a obra culpada de crimes de preconceito.

"Romance Tropical", de 1944, foi escrito por Théo-Filho, autor que fez sucesso antes da Guerra Mundial mas, depois, saiu do radar das editoras.

Os alunos, do segundo ano de graduação, decidiram conservá-lo no exílio literário pois identificaram passagens "sexistas" e "machistas", além de outras pouco respeitosas com religiosidades afro-brasileiras e católica.

O romance será editado, como trabalho acadêmico, mas não publicado. Todos ficarão protegidos da palavra desviante.

Cristina Serra - André Mendonça apequena o STF

Folha de S. Paulo

Danos no Executivo e no Legislativo podem ser corrigidos a cada quatro anos

A aprovação do reverendo André Mendonça para o STF viola a laicidade do Estado e a corte constitucional. O simples fato de Bolsonaro ter usado a religião como critério de escolha deveria ter ensejado a rejeição do nome de seu ex-ministro. A separação entre igreja e Estado é esteio civilizatório. O Senado da República não poderia ter sido coautor da violação de tal princípio. Um perigoso limiar foi ultrapassado.

No Executivo, Mendonça ajudou o chefe a degradar a democracia, perseguindo críticos do governo, atacando esforços de governadores e prefeitos no combate à pandemia. Como AGU, fez inflamada defesa da abertura de templos e igrejas enquanto o vírus matava 4.000 brasileiros por dia.

Alvaro Costa e Silva - Bolsonaro sem fantasia nos braços do centrão

Folha de S. Paulo

Enquanto afunda a economia, governo avança no autoritarismo

Da mesma maneira que a realidade tem superado a imaginação dos ficcionistas, os cartunistas recebem presentes todos os dias. O governo se transformou num cartum da Laerte ou do Jaguar: um sujeito bizarro plantado à beira da estrada, tal e qual uma laranja bichada, acenando para os motoristas que passam. Uma cena suficientemente ridícula, mas que logo avança até um segundo quadro não menos constrangedor.

Uma mulher, no banco de passageiro de um carro, xinga o sujeito parado na rodovia. Este é ninguém menos que o presidente da República, que determina a abordagem e a prisão da mulher. Na ocorrência consta que ela "gritou palavras de calão direcionadas a ele, mais especificamente berrou 'Bolsonaro filho da p...'". Fim do cartum e do país.

Bolívar Lamounier* - Entre duas armadilhas

O Estado de S. Paulo

A armadilha do baixo crescimento e a da polarização política se engalfinham, no Brasil, cada uma querendo se sobrepor à outra

O Brasil deve ser o único país onde duas armadilhas se engalfinham, cada uma querendo se sobrepor à outra. O leitor está cansado de saber quais são as duas armadilhas a que me refiro; sou forçado a falar delas, embora minha preferência fosse escrever sobre alguma opereta. Falo, evidentemente, da “armadilha do baixo crescimento” e da polarização política que se configurou a partir da eleição presidencial de 2018.

Suponhamos que nossa renda anual por habitante ande pela casa dos US$ 10 mil anuais. O fato de estarmos aprisionados na “armadilha do baixo crescimento” significa que, mesmo crescendo 3% ao ano (hipótese remota), levaremos algo como 23,3 anos para duplicarmos essa renda ridícula e atingir o nível ainda ridículo de US$ 20 mil anuais. Com o sistema institucional, a máquina de Estado e a classe política que nos subjugam, é assaz duvidoso que tal milagre possa acontecer. Mas essa primeira parte da história já lhes contei uma dúzia de vezes. Passo à segunda, para evitar a monotonia.

João Gabriel de Lima* - O ‘Superbigode’, o Papai Noel e a vida real

O Estado de S. Paulo

Em democracias deterioradas, governantes negam os problemas e propõem soluções mirabolantes

Um novo super-herói viralizou nesta semana no Youtube, em seu embate contra um vilão loiro instalado na Casa Branca. O americano platinado e seus asseclas não têm como resistir à força do “Superbigode”, que usa sunga de Super-homem, destrói os inimigos com sua “mão de ferro” literal – e tem o rosto e os trejeitos do presidente venezuelano Nicolás Maduro.

Nas democracias saudáveis, a luta pelo poder se dá com o objetivo de resolver problemas concretos dos eleitores. Em democracias deterioradas, como a venezuelana, os governantes negam os problemas, atribuindo-os a um vilão externo – no caso, o ex-presidente Donald Trump, que nem está mais na Casa Branca – e propõem soluções mirabolantes. A anedota do super-herói bigodudo zomba da tragédia humanitária vivida pelo país vizinho.

Miguel Reale Júnior* - A aritmética de Hitler

O Estado de S. Paulo

A vingança, como se deu com o austríaco, tem-se dado nas ações repetidas da polícia no Brasil em operações marcadas por malvadeza

Em 23 de março de 1944, na Rua Rosella, em Roma, ocupada por tropas alemãs, 32 soldados nazistas foram mortos em atentado preparado pela resistência italiana. Por ordem de Hitler, para cada alemão morto deveriam ser fuzilados dez italianos. Assim, aleatoriamente, 335 romanos foram levados às Fossas Ardeatinas, ao sul da cidade, e lá executados.

Conforme o oficial responsável pelo massacre, Priebke, condenado anos depois, na Itália, à prisão perpétua, a ordem de Hitler consistia em “represália ao atentado organizado pela resistência”.

O médico Attilio Ascarelli, autor da autópsia das vítimas do massacre, bem definiu: “Foi a cruel satisfação dum brutal espírito de vingança”.

A vingança, seja a calculadamente arquitetada, seja a de imediato aplicada, ao não ter proporção com o mal antes sofrido, visa apenas ao deleite do espírito perverso com a crueldade imposta.

Entrevista | Aécio Neves: ‘Cabe a Doria construir uma grande aliança’

Deputado diz que o PSDB deve lutar pela ‘sobrevivência’ e negociar em prol da terceira via

Lauriberto Pompeu, Felipe Frazão / O Estado de S. Paulo

Principal opositor do governador de São Paulo, João Doria, no PSDB, o deputado Aécio Neves (MG) avalia que seu partido deve buscar a sobrevivência política e focar na eleição de uma boa bancada no Congresso Nacional em 2022, em vez de apostar em uma candidatura presidencial que não decole. “Mesmo que o PSDB não vença essas eleições, nós temos de sobreviver enquanto um partido sólido no Congresso”, disse Aécio ao Estadão, após a vitória do rival nas prévias para ser candidato ao Palácio do Planalto. Na entrevista, Aécio afirmou que a “bola” agora está com Doria. “Cabe agora demonstrar que nós estávamos errados e construir em torno de si uma grande aliança”, afirmou Aécio, para quem o partido deve também estudar alianças com outros nomes, como Rodrigo Pacheco (PSD), Ciro Gomes (PDT) e Sergio Moro (Podemos). 

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Qual será seu papel na campanha presidencial de 2022 no PSDB?

Não sei ainda como vai ficar o quadro, tem muita água para rolar debaixo dessa ponte. Se Doria vai ou não se viabilizar, o tempo é que vai dizer. Eu acho que esse quadro ainda está muito incerto. Alardearam durante a campanha: “o Aécio quer bolsonarizar o PSDB”. Nada disso, eu não apoiei o Bolsonaro na campanha presidencial quando ele era o “mito”, ao contrário de muitos tucanos.

O sr. vai sair do partido?

De forma alguma, estou construindo o PSDB há mais de 30 anos. Essa é uma etapa da vida do PSDB, já passei por várias outras. Eu vou sempre atuar no sentido de que o PSDB possa liderar um projeto de País.

Marco Antonio Villa - Os evangélicos e a política

Revista IstoÉ

Os partidos políticos e seus candidatos resolveram deixar de lado a Carta Magna e se adaptar à selvageria eleitoral

A cada dois anos se repete um ritual nada republicano — muito menos em um País laico. Candidatos vão visitar líderes evangélicos em busca de votos. Visitar, não é o problema. É até um gesto de civilidade. Contudo, o objetivo é de cabalar apoio no velho sistema do voto de cabresto, como se estivéssemos no túnel do tempo rumo à República Velha. O “rebanho” estaria pronto a votar no que for indicado pelo pastor, sem refletir, questionar ou conhecer o que o candidato pretende realizar.

A República brasileira é laica desde a sua fundação. A separação entre Igreja e Estado foi um dos primeiros atos do governo Provisório. Posteriormente, a Constituição de 1891 consagrou este princípio rompendo com o direito do Padroado presente na Constituição de 1824. A jovem República teve como referência ideológica o laicismo tão presente na Terceira República francesa.

Se tivemos muitos padres — da Igreja católica — participando da vida política desde o processo independentista, a ação era com base em uma determinada visão de mundo no universo ideológico laico e não como representantes de alguma confissão religiosa.

Carlos Alberto Sardenberg - Perdeu o juízo

O Globo

Será que o ministro Paulo Guedes acredita mesmo que a economia brasileira está decolando ou apenas tenta criar uma narrativa otimista para esconder um enorme fracasso?

É intrigante: não há como responder.

Por um lado, os números são avassaladores. Eliminados os indicadores que parecem positivos por causa da comparação com uma base muito baixa, o ano passado, o resto aponta para uma paradeira inequívoca. Números do PIB trimestral (duas quedas seguidas), da produção industrial mensal (cinco quedas em série), do Índice de Atividade Econômica do Banco Central (duas quedas seguidas), do varejo e dos serviços — tudo do IBGE — mostram que, numa visão generosa, a economia está estabilizada em torno de zero. Às vezes cresce um pouco acima, outras um tanto abaixo.

Na verdade, a discussão relevante entre economistas do primeiro time — de visões variadas — trata do seguinte: o Brasil se encaminha para a estagnação, a recessão ou estagflação?

Pablo Ortellado - 2022 vai ser pior do que 2018

O Globo

A lamentável campanha com a hashtag #NoivinhaDoAristides que vimos disparar nesta semana no Twitter é prenúncio nada auspicioso do jogo sujo que veremos nas eleições de 2022.

Se, em 2018, a campanha de Bolsonaro se destacou por ataques sórdidos e pelo uso do WhatsApp para esconder a origem de mensagens virais maliciosas, em 2022, sob condições tecnológicas e regulatórias semelhantes, são favas contadas que as forças políticas dominantes, da direita à esquerda, farão uso dos piores expedientes para tentar eleger seus candidatos.

No último sábado, um pouco antes de participar da cerimônia de formatura dos cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras, Bolsonaro foi até as margens da Dutra para acenar a motoristas — num gesto que vem sendo repetido desde setembro.

Doria: A reconstrução do ninho

Os desafios de Doria para se tornar o nome da terceira via em 2022

Após prévias, o tucano precisa unificar o seu partido, fechar acordos fora dele e melhorar o seu desempenho eleitoral

Por Bruno Ribeiro, João Pedroso de Campos / Revista Veja

Apesar de ser um dos políticos brasileiros mais bem-sucedidos dos últimos anos (não perdeu nenhuma eleição que disputou desde sua estreia nas urnas, em 2016, quando conquistou o direito de comandar a maior metrópole do país), o governador paulista João Doria, do PSDB, está longe de ser uma unanimidade dentro e fora de seu partido. Seus muitos inimigos e analistas apressados são pródigos em prever tropeços em sua trajetória política, e a aposta mais recente envolvia a possibilidade de fracasso nas prévias presidenciais tucanas. Como se sabe, a previsão deu errado, mas a briga foi mais acirrada do que se imaginava. O fato de Doria estar à frente da unidade mais poderosa da federação não o impediu de sofrer derrotas sucessivas em quase todos os seus pleitos e interesses na fase de organização dessa disputa. Além disso, a maioria dos caciques da sigla, incluindo nomes como o deputado federal Aécio Neves (MG), o senador Tasso Jereissati (CE) e o ex-governador Geraldo Alckmin (SP), trabalhou fortemente a favor do concorrente rival, o governador gaúcho Eduardo Leite. No fim da tumultuada disputa, na qual uma pane na ferramenta eletrônica de votação adiou por uma semana a decisão, Doria, mais uma vez, venceu os obstáculos, sagrando-se vitorioso. “Cada vez que dizem que não vai dar, eu aumento minhas horas de trabalho, minha dedicação. Exatamente para demonstrar o contrário”, afirmou ele a VEJA.

Agora, o governador precisará multiplicar esses esforços diante dos desafios gigantescos que terá pela frente no sonho de chegar à Presidência, mostrando-se a alternativa ao centro mais viável para romper a polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, atuais líderes nas pesquisas. A primeira tarefa espinhosa envolve reconstruir o ninho tucano, que nunca se recuperou de seu período de glórias dos tempos da Presidência de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002. Derrotas sucessivas ajudaram a gerar divisões internas, que se aprofundaram ainda mais ao longo do recente processo das prévias. Até a bandeira de ética se perdeu ao longo do caminho, com figurões da sigla atingidos em cheio por denúncias de corrupção, com destaque nesse quesito para Aécio Neves. Ciente do tamanho da empreitada, Doria expressou a sua preocupação logo no discurso da vitória, em Brasília, no último dia 27. “Nessas prévias não há nenhum derrotado”, disse. “Precisamos da união do PSDB e de todos os partidos que possam construir o centro democrático.”

O processo de pacificação do tucanato passa pela complexa construção de pontes entre ele e algumas das lideranças que apoiaram Eduardo Leite. Não será fácil. O próprio governador gaúcho já recusou a primeira tentativa de aproximação, materializada na forma de um convite para trabalhar na campanha do ex-adversário. Doria tentará novos lances na mesma direção é já escalou seu coordenador de campanha nas prévias, Wilson Pedroso, para ir dentro em breve ao Rio Grande do Sul com a bandeira branca em mãos. Outro ponto delicado é a relação com o presidente do partido, Bruno Araújo, que não escondeu nos bastidores a simpatia por Leite e foi responsável por decisões importantes contrárias aos interesses de Doria durante as prévias. “Bruno é um sapo que vamos ter de engolir”, resume um dos integrantes do grupo paulista. Já para se aproximar de tucanos de outros estados, Doria conta com o auxílio de aliados como Antonio Imbassahy, ex-líder da bancada na Câmara e que hoje é secretário da representação de São Paulo em Brasília, e o vice-governador Rodrigo Garcia, ex-líder do DEM no Congresso, que já tem feito incursões por Brasília para costurar alianças. “Como candidato, escolhido legitimamente nas prévias, Doria reúne as condições para dialogar com bancadas federais e estaduais, considerando os contextos regionais de cada uma delas”, afirma Garcia.

Dora Kramer - Tempo de estio

Revista Veja

A reação moderada de Doria na vitória pode indicar que ele tem noção exata dos desafios à frente

A vitória de João Doria nas prévias do PSDB não resolve os problemas do governador de São Paulo nem aplaca atritos ou ameniza as agruras do partido. Muito menos indica uma direção segura para o campo político, que busca espaço eleitoral viável entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio da Silva.

Esse pessoal hoje está mais ocupado em se posicionar com o lançamento de pré-candidatos e em entender o impacto da entrada de Sergio Moro em cena do que preocupado com a possibilidade de Doria vir a consolidar a candidatura como inamovível.

Em outros tempos, a definição de um nome do PSDB para disputar a Presidência causaria agitação na atmos­fera. Para o bem e para o mal. Os adversários voltariam suas artilharias contra e os correligionários celebrariam a escolha como marco inicial de trajetória rumo ao êxito.

No entanto, o que a realidade tem nos mostrado nesses dias pós-definição dos tucanos é um misto de indiferença, descrença e desconfiança. Da parte das forças que buscam um lugar de destaque ao centro não se viu nem se ouviu nenhuma manifestação pública vigorosa de júbilo nem de pesar.

Marcus Pestana* - Orçamento público e democracia

Nunca é demais repetir: os pilares fundamentais das democracias modernas são a Constituição e o orçamento público. A Constituição, fixando direitos e deveres; erguendo o sistema de freios e contrapesos; regulando as relações entre Estado, sociedade e mercado; e, limitando o poder do Estado. Já o orçamento, regulando a capacidade de tributação dos governos; dando transparência as receitas e despesas públicas e ordenando o planejamento anual das ações governamentais.

O orçamento lida com uma linguagem árida para leigos. Poucas pessoas têm capacidade e paciência para analisar o calhamaço de informações, números, dotações, rubricas, projetos e programas. Os recursos disponíveis não são ilimitados, as demandas são múltiplas e a elaboração do orçamento exerce o papel de organizar as escolhas entre fins alternativos. O populismo fiscal é danoso, e, em geral, produz efeitos negativos inversos às boas intenções iniciais que patrocinam a gastança desenfreada.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O escarcéu como método

O Estado de S. Paulo

Ausência de bolsonaristas nos testes da urna eletrônica prova que a bagunça provocada pelo presidente a respeito da confiabilidade do voto era só para distrair o País

A conclusão dos testes de integridade da urna eletrônica pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no fim de novembro comprovou a confiabilidade de um sistema moderno e do qual o Brasil pode se orgulhar. Por seis dias, as urnas ficaram à disposição de ataques de “hackers do bem”, um trabalho que teve como objetivo aprimorar a tecnologia para a disputa de 2022. Vinculados a universidades, empresas privadas e órgãos públicos, 26 investigadores se inscreveram para o desafio de procurar vulnerabilidades físicas e tecnológicas para invadir o sistema. Das 29 iniciativas, 24 falharam completamente e 5 apontaram apenas oportunidades de aperfeiçoamento. Nenhuma foi capaz de alterar o voto dos eleitores, explicou o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso.

Chamou a atenção, no entanto, o desinteresse dos partidos políticos em participar do processo de fiscalização da urna eletrônica, principalmente dos apoiadores do presidente da República. Nem parece que há quatro meses o Brasil foi palco de um show de horrores liderado por Jair Bolsonaro, que contestava o sistema que o elegeu deputado federal por cinco vezes e que lhe conferiu o mais alto cargo do País em 2018. Sem apresentar nenhuma prova sequer sobre a vulnerabilidade das urnas, o presidente mobilizou as atenções dos cidadãos e das instituições, alimentando a hipótese – de resto não inteiramente afastada – de que não reconhecerá o resultado das eleições do ano que vem se ele não for o vencedor.

Poesia - Affonso Romano de Sant'Anna - Os desaparecidos

De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricô ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
- mal ligavam o torno do dia.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes esvaneciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, arefeitos, constatar no além,
como os pescadores partiam.