quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Bernardo Mello Franco: Curtindo as férias adoidado

O Globo

Há momentos que são capazes de resumir um mandato presidencial. O Brasil assistiu a um deles nos últimos dias de 2021. A Bahia registrou as piores enchentes em mais de três décadas. Enquanto o estado submergia, Jair Bolsonaro foi curtir férias no litoral catarinense.

A catástrofe deixou 26 mortos, 518 feridos e 93 mil desabrigados. Derrubou pontes, interditou rodovias, destruiu estoques de vacinas e medicamentos. Na semana passada, o presidente foi questionado sobre a longa estadia na praia. “Espero não ter que retornar antes”, respondeu.

Bolsonaro se esbaldou. Dançou funk, passeou de jet ski, visitou um parque de diversões. Antes do Natal, já havia passado seis dias no Guarujá. Fez um bate-volta em Brasília e retornou ao ócio remunerado em São Francisco do Sul.

No dia 31, o presidente convocou cadeia de rádio e TV para um pronunciamento à nação. Em seis minutos e meio de falatório, só dedicou duas frases aos “nossos irmãos da Bahia”.

Visitar locais de grandes tragédias é obrigação básica de qualquer governante. A presença da autoridade não devolve vidas perdidas, mas indica que os sobreviventes não estão sozinhos. É uma demonstração de respeito e empatia — duas mercadorias em falta no Planalto.

Bolsonaro não se limitou a esnobar a calamidade. Ainda mandou rejeitar a ajuda humanitária oferecida pela Argentina. O chanceler Carlos França obedeceu calado, em mais um episódio de rebaixamento do Itamaraty.

A recusa teve um componente claro de revanchismo. O capitão se considera inimigo do presidente Alberto Fernández e vê a Bahia como reduto eleitoral do PT. Ele escolheu descansar em Santa Catarina, onde recebeu a maior votação proporcional em 2018.

O desprezo pelo sofrimento alheio é um traço conhecido da personalidade presidencial. Bolsonaro se projetou na política ao debochar das vítimas da ditadura. Na pandemia, estendeu o desdém aos órfãos da Covid. “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, provocou, quando o país já contava 260 mil mortos.

Mesmo cobrado por aliados, ele se negou a abrir mão de algumas horas de lazer para se solidarizar com os baianos. Só interrompeu as férias quando sentiu dores no próprio abdome.

 

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