sábado, 15 de janeiro de 2022

Carlos Góes: A importância do autoteste de Covid

O Globo

Para atingirmos a realidade de Europa ou EUA, esses testes teriam de estar disponíveis em abundância, de forma gratuita ou muito barata

Era 31 de dezembro. Minha família, como muitas outras, estava reunida para o fim do ano. A cada dois dias, vínhamos testando todos na casa com autotestes de Covid-19 importados. Eis que, logo no dia de réveillon, um de meus familiares testou positivo.

Posteriormente, um teste laboratorial confirmaria seu diagnóstico positivo; mas a pessoa se isolou imediatamente. Testamos o resto da família nos dias seguintes — e ninguém mais se contaminou.

Quando soube do resultado, liguei para uma pessoa que tinha sido exposta no dia anterior. Ela estava na estrada, viajando para ver sua própria família. Parou numa farmácia e fez um teste. Deu positivo. Tomou o caminho de volta e não colocou sua família em perigo.

Embora seja somente um caso particular, minha experiência ilustra o poder do acesso a testes rápidos para Covid-19. Possivelmente evitamos muitas contaminações somente por causa disso.

Por que a maioria das famílias brasileiras não têm acesso a autotestes, como a minha? Porque, no momento em que escrevo, os autotestes ainda não são regulamentados no Brasil.

Só é possível fazer um teste para Covid-19 no Brasil por meio de um profissional da saúde — como um farmacêutico ou um técnico laboratorial. Nos Estados Unidos, posso comprar autotestes de antígeno no supermercado e levá-los para casa, usando quando for necessário. Custam cerca de US$ 10 (0,4% do salário mínimo da Califórnia).

Em Portugal e noutros países da Europa, estão disponíveis por € 4 (0,6% do salário mínimo em Portugal). Na Inglaterra, são distribuídos gratuitamente pelo governo.

Aqui no Brasil, o mesmo teste usado para autotestes é aplicado por farmácias. Por causa dos custos extras, menor escala e menor competição, acabam saindo mais caro: entre R$ 75 e R$ 100 (6% a 8% do salário mínimo brasileiro), inacessível para boa parte da população.

Nesta semana, O GLOBO noticiou que o Ministério da Saúde pedirá a aprovação do uso de autotestes à Anvisa. Quarta-feira, a Anvisa declarou que ainda não tinha recebido pedido formal para liberação dos autotestes, que ainda dependeria de outros estudos.

Em resposta a uma indagação que fiz, o ministério informou que “a pasta estuda as especificidades dos autotestes para avaliar a implantação deste tipo de exame no país”. Disse ainda que não havia, até o começo da semana, nenhum processo na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

Autotestes não são perfeitos. Uma crítica a seu uso é que podem gerar um número importante de falsos negativos, seja por erro do usuário ou pior performance em relação ao teste laboratorial.

Mas isso só é problema se o comportamento padrão for ficar em casa para tudo — e o falso negativo induzir pessoas a saírem de casa. À medida que as restrições se reduzem, o comportamento padrão passa a ser sair de casa. Um teste positivo impede alguém de sair, enquanto um negativo só mantém o status quo. Autotestes funcionam como mecanismos de prevenção.

No fim, a conveniência de uso não é questão puramente científica, mas uma análise de custo-benefício. A Anvisa da União Europeia afirmou num estudo que autotestes “reduzem a transmissão comunitária ao permitir o rápido isolamento de casos infecciosos”.

Autotestes são vistos pelos especialistas de lá como uma barreira que altera o comportamento no caso de teste positivo. Por enquanto, as autoridades brasileiras têm enfatizado mais os riscos que potenciais benefícios.

Dado esse cenário, o que o governo poderia fazer? Se queremos nos aproximar da realidade da Europa ou dos EUA, o objetivo seria que esses testes estivessem disponíveis em abundância, de forma gratuita ou muito barata.

Além de regulamentar o autoteste, o governo poderia ajudar a reduzir o preço de mercado com uma combinação de redução de impostos e política industrial. Isenção de impostos de importação e ICMS podem reduzir o preço na ponta.

A garantia de compra de centenas de milhões de testes pelo SUS, com adiantamento do pagamento, poderia incentivar fabricantes locais a ampliarem suas linhas de produção e reduzirem o custo unitário. Ao contrário de outras políticas setoriais, nessa há menos incerteza sobre o benefício, já que evitar infecções tem impactos econômicos claros.

Individualmente, o autoteste já ajudou a reduzir a transmissão entre minha família e amigos. Sendo liberado e incentivado no Brasil, outras famílias poderiam ter o mesmo privilégio.

 

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