sábado, 29 de janeiro de 2022

Carlos Góes: O direito de sonhar

O Globo

Uma das memórias mais fortes da minha adolescência é ser aprovado na universidade. Lembro bem da felicidade de ver meu nome na lista e a mirada orgulhosa de meus pais por eu ter passado na federal. Também lembro de me sentir realizado, como se tudo aquilo ali fosse fruto exclusivo do meu trabalho. Mas eu, adolescente, estava errado: a realidade não é exatamente assim.

Em um sentido muito básico, aquele meu pensamento tinha alguma razão de ser. O provável é que, tudo o mais constante, caso eu não tivesse estudado todo o tempo que estudei, não teria sido aprovado. Existe algum mérito na aprovação.

Mas, nesse caso, manter tudo o mais constante é enganador. Eu cresci numa família de classe média, com um núcleo familiar estável e em que a educação sempre foi vista como prioridade. Se minha circunstância fosse diferente (ou seja, nada mais constante), mesmo que eu me esforçasse o mesmo (ou até mais), é bem provável que o resultado fosse diferente.

Nossas circunstâncias condicionam as chances que temos de alcançar determinados resultados. Alguns anos atrás, publiquei um artigo junto com Daniel Duque, hoje pesquisador da Escola Norueguesa de Economia, em que estimamos que um jovem de uma família com renda familiar de classe média baixa tinha 2% de chance de ingressar numa universidade pública.

Para um jovem de uma família muito rica, a chance era muito maior: entre 30% e 40%.

Não faz sentido falar em mérito sem considerar o ponto de partida.

Segundo dados do IBGE, quase metade dos jovens vindos de famílias do quinto mais baixo da distribuição de renda sequer termina o ensino médio. O menino da favela que chega na universidade tem muito mais mérito do que o que cresceu em um bairro nobre.

Um dos mecanismos que explicam essa discrepância é a tirania das baixas expectativas. Se não há ninguém ao seu redor que segue determinada carreira, é improvável que você corra o risco de ser o primeiro do seu meio a seguir aquele caminho.

Alex Bell e coautores demonstraram que esse efeito realmente existe: crianças que se mudam para vizinhanças com mais inventores têm maior probabilidade de se tornarem inventores quando adultos.

Outra explicação está relacionada ao desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças. Crianças que têm maior acesso à nutrição e educação na primeira infância se tornam trabalhadores mais produtivos, seres humanos mais saudáveis e cidadãos mais responsáveis.

No fim da década de 1960, foi conduzido um famoso experimento educacional, hoje ligado ao prêmio Nobel de economia Jim Heckman, chamado “Perry Preschool Project” (Projeto da Pré-escola Perry). Pesquisadores sortearam quais famílias com crianças entre 3 e 4 anos de um bairro pobre teriam acesso a uma pré-escola.

E eles colheram informações sobre essas crianças, tanto as que foram à pré-escola quanto as que não foram, durante toda a vida.

Em 2019, quando os participantes desse experimento pré-escolar já estavam com mais de 50 anos, Jim Heckman e Ganesh Karapakula fizeram uma nova avaliação dos resultados. As crianças que tiveram acesso à pré-escola, em média, quando adultos: tinham salários mais altos; alcançaram níveis educacionais superiores; foram encarceradas com menor frequência; e tinham melhores indicadores de saúde.

Como a seleção foi aleatorizada, qualquer efeito estimado pode ser corretamente interpretado como um efeito causal (não apenas correlação) da pré-escola.

Recentemente, outro estudo feito por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores demonstrou que dar dinheiro para mães pobres causa maior atividade cerebral em bebês. Eles usaram dados do programa “Baby’s First Years” (Primeiros Anos do Bebê), que selecionava aleatoriamente mães pobres para receber US$ 4 mil ou US$ 240 por ano.

Depois, avaliaram a atividade cerebral das crianças com um eletroencefalograma. Resultado: os filhos das mães que receberam mais dinheiro demonstraram maior atividade cerebral.

Tudo isso indica que, mesmo em uma idade muito baixa, as circunstâncias socioeconômicas condicionam nossa vida.

Eu tive sorte: quando criança, pude sonhar. Hoje tenho consciência de que a loteria do nascimento determina nossas circunstâncias. E, segundo a melhor evidência disponível, nossas circunstâncias condicionam o tamanho dos nossos sonhos. Reduzir a pobreza e investir em educação, em especial na primeira infância, é dar às nossas crianças o direito de sonhar.

 

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