quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Daniel Rittner: Por que é essencial entender o olavismo

Valor Econômico

O antibolsonarismo precisa conhecer seus rivais para derrotá-los

A mídia apoia os gays para promover o controle populacional? Há livros ensinando crianças a fazer sexo oral com elefantes? O general Geisel era comunista? Nazismo e FMI são de esquerda? Bill Clinton era um agente de Pequim? A internet foi criada para combater o ateísmo?

Essas perguntas, da forma como estão reproduzidas acima, faziam parte da descrição de comunidade criada em 2004, no finado Orkut, e dedicada ao escritor Olavo de Carvalho. Deve-se à pesquisadora Michele Prado, autora do livro “Tempestade Ideológica”, um relato curioso sobre os primeiros passos e o crescimento do olavismo no país. Seu estudo, lançado no ano passado, merece ser lido com atenção - para quem não tiver tempo ou paciência, dá para se contentar com os capítulos 1 a 3 (os restantes são bem inferiores e muitas vezes se tornam mero glossário sobre movimentos radicais, sobretudo nos EUA, já amplamente conhecidos por quem se interessa pelo tema).

A nova direita, no Brasil e no exterior, leu e se aprofundou sobre estratégias da esquerda e obras de referência no ambiente progressista. O inverso não é verdadeiro. Com frequência, trata-se o ultraconservadorismo com deboche e desprezo. A falta de conhecimento e a indiferença sobre como pensa essa fatia do eleitorado, por radical que seja, impede o desenvolvimento de táticas eficientes para rebater ou neutralizar seus planos de ação.

Por isso o livro de Michele Prado é recomendado para iniciantes e iniciados. Um de seus méritos é o resgate de como esse fenômeno surgiu no Brasil, influenciado de modo determinante por Olavo, e foi ganhando espaço enquanto era subestimado ou ignorado pelos formadores de opinião. Para a esquerda e eventuais terceiras vias, saber o que faz a cabeça de seus seguidores é fundamental.

Michele sustenta que o olavismo reúne diversas características de seita: 1) o líder é visto como mensageiro de uma verdade suprema; 2) deve-se a ele fidelidade total; 3) apoia-se na conversão pessoal, que implica mudanças no modo de vida e forte componente emocional; 4) é pouco dialogante e defende energicamente sua ideologia, provocando quase sempre um isolamento do mundo; 5) seus membros “renascem” e se veem como eleitos, ou seja, que foram escolhidos para desempenhar uma missão muito importante.

Um ingrediente básico do renascimento é o “necrológio” - exercício obrigatório nas aulas iniciais do curso de filosofia de Olavo. O aprendiz presume-se morto e, em terceira pessoa, reflete sobre sua vida que ali se encerra. “Ao criar esta narrativa, será possível ter um mínimo de orientação moral na vida”, explica a produtora Brasil Paralelo, espécie de Netflix da direita, em seu site. “Saber quem você é agora, quem quer ser e julgar suas ações nesta transição.”

Os necrológios servem como ponto de inflexão para esses aprendizes e geram sensação de pertencimento a um grupo de iluminados. Estimulados por Olavo, que repetia à exaustão sua responsabilidade histórica de resgatar a alta cultura no Brasil, eles alimentavam uma ideia de grandeza e de missão intelectual a respeito de si mesmos. “O sentimento de superioridade por fazer parte do grupo de alunos era incentivado por Olavo desde a primeira aula. A ideia de que aqueles alunos eram especiais e tinham nas mãos o destino da cultura de um país inteiro - e que ele próprio era o único educador no Brasil capaz de criar uma elite espiritual e cultural para a salvação da nação - é textualmente mencionada pelo professor na aula 01”, diz Michele no livro.

O advogado Horacio Neiva, doutorando em Filosofia do Direito na USP, foi ontem às redes sociais explicar como se desiludiu em sua experiência com o olavismo quando era um jovem universitário. Lembrou uma das marcas registradas de Olavo: o “name dropping”. Ele despejava, nos alunos, grande quantidade de obras e autores desconhecidos. Que efeitos isso produzia? Afirma Neiva: uma percepção de que os demais professores eram ignorantes (e Olavo era a luz); crença de que havia um complô para impedir o acesso a essas fontes de conhecimento; a sensação de que o grupo estava resistindo a uma ameaça (política, cultural, intelectual); a autoconfiança injetada em jovens e adultos de baixa formação, mas que se sentiam metodologicamente validados em sua ignorância.

(Aqui abro parênteses para relatar uma interação que tive recentemente com um olavista raiz. Quando conversávamos sobre disseminação de fake news, ele me perguntou em quais argumentos teóricos eu baseava minhas afirmações. Diante da resposta, tripudiou e disse a única referência possível na discussão era Ion Pacepa. Ion Pacepa? Fiquei envergonhado e intimidado por desconhecer o autor. Achei inadmissível para um jornalista dedicado ao tema. Descobri que se tratava de um ex-chefe de espionagem da Romênia comunista de Nicolae Ceausescu. Ele desertou e fugiu para os EUA. Escreveu o livro “Desinformação” para contar como conseguia plantar falsas notícias na mídia ocidental e desestabilizar governos. Fiz questão de encomendar e ler. É uma boa história, nada além disso, sem a fundamentação teórica que meu interlocutor cobrava de mim, supostamente para me acuar na discussão. Ah, o “name dropping” de Olavo...)

Em “Tempestade Ideológica”, Michele Prado relembra como o advento do Orkut - e logo em seguida do Twitter e do Facebook - deu mais visibilidade às ideias de Olavo, antes colunista pouco lido de jornais. Os algoritmos se encarregaram de amplificar o alcance das mensagens. Olavo foi ganhando cada vez adeptos para seus seminários de filosofia em plataforma virtual. As crises econômicas e políticas de 2013 em diante, associadas ao PT, reforçaram o discurso da nova direita. O mantra “Olavo tem razão” saiu dos porões da internet e virou faixa nas ruas.

No governo Jair Bolsonaro tivemos os 600 mil mortos da pandemia, as vítimas do crime em Brumadinho, perdemos Elza Soares, Paulo Gustavo, Eva Wilma, Nicette Bruno, Tarcísio Meira, João Gilberto, Nelson Sargento, Marília Mendonça, Bruno Covas. Nenhum deles mereceu a deferência feita pelo presidente com o decreto de luto oficial com a morte de Olavo. Bolsonaro tenta afagar sua base mais radical, mas não parece tratar 20% do eleitorado brasileiro com chacota, como fazem muitos de seus rivais. Para derrotá-los, é bom entendê-los.

 

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