sábado, 8 de janeiro de 2022

Dora Kramer: Nós e a brisa

Revista Veja

Vaticínios sobre a inviabilidade da chamada terceira via são feitos sem que se dê a esse caminho ao menos o benefício da dúvida

Três ideias rondam o ambiente político neste início do ano eleitoral de 2022: Luiz Inácio da Silva voltará à Presidência, Jair Bolsonaro lançará mão de ilegalidades para resistir à derrota e nenhuma alternativa a tal cenário é possível. Fala-se disso como se o inesperado não pudesse nos fazer uma surpresa, conforme descrito por Johnny Alf em Eu e a Brisa, nos idos de 1967.

Pois no imprevisível junto às artes do acidental é que residem a graça e a essência de uma eleição sob as regras da democracia, onde o que vale é a vontade de milhões de pessoas envolvidas num processo que só acaba quando termina.

Portanto, aos arautos das convicções inamovíveis conviria flexibilizar as respectivas mentes de modo a não se tornarem reféns de profecias que se autorrealizam.

De algum modo já vivemos isso desde quando forças políticas começaram a se mobilizar em torno de outra hipótese que não a repetição de velhos erros. De de lá para cá, o que se vê são vaticínios sobre a inviabilidade da chamada terceira via.

Isso sem que se dê a esse caminho ao menos o benefício da dúvida. Uma chance real, não meramente retórica, expressa em frases do tipo “…caso subam nas pesquisas” acompanhadas de toda sorte de desqualificações porque ninguém ainda foi capaz de ameaçar a dianteira de Lula e Bolsonaro. A oito meses da eleição.

A essa altura, Fernando Henrique hesitava em deixar o Ministério da Fazenda, Fernando Collor era nanico nas pesquisas e Jair Bolsonaro, tratado como cavalo paraguaio atolado em chuva de verão. Lula esteve no pódio três vezes antes de sagrar-se campeão, a reeleição de Dilma Rousseff foi dada como perdida, Marina Silva vista como a grande possibilidade da estação, e por aí vão os exemplos sem nos esquecermos de uma arrancada de Ciro Gomes e da repentina derrocada de Roseana Sarney. Tudo isso a meses de cada uma daquelas eleições.

Cabe lançar dúvida também sobre o forrobodó institucional que Bolsonaro estaria preparando para evitar deixar o Palácio do Planalto. Primeiro, porque não está fora de questão uma desistência. Do Palácio, não do Planalto, candidatando-se a outro cargo a fim de não perder o foro privilegiado. Para isso, contudo, precisaria se desincompatibilizar da Presidência até abril, deixando Hamilton Mourão por seis meses no cargo. Impossível não é, mas improvável.

Em segundo lugar, o fracasso das investidas antidemocráticas torna lícito duvidar do êxito de ações ao modo de Donald Trump no fatídico janeiro de 2021. Se Bolsonaro precisou acomodar sua viola na sacola da moderação pós-7 de setembro, quando ainda dispunha de um ano de mandato pela frente, não será derrotado que terá apoio para tentar melar o resultado.

Por último, vamos ao primeiro: Lula. O ex-presidente em sua espetacular marca de campeão absoluto nas pesquisas tornou-se estuário não apenas dos votos de seus admiradores, mas de toda sorte de expectativas embaladas no critério único de que vale qualquer coisa para impedir a reeleição do atual presidente.

Até mesmo deixar de lado a busca de uma melhor solução para optar pela parte do problema. Ou Jair Bolsonaro não é fruto dos desmandos do PT? Ou não foi eleito na batida da tecla da escolha do “menos pior”, que, na visão de um grande contingente de eleitores, seria a volta dos salvados dos funis do mensalão, do petrolão, do populismo na economia e da vocação para açambarcar o poder de modo hegemônico?

Não parece racional o país eleger Lula para fugir de Bolsonaro, que foi eleito para evitar o PT. Volta-se ao ponto inicial e não se avança no jogo. É preciso alguma clareza. A respeito do fato de Lula e companhia não acharem que fizeram nada de errado.

As pessoas lembram dos feitos, relevam os malfeitos e não se perguntam, por exemplo, como o Lula de novo presidente conduziria suas relações com o Congresso. Comprando outra vez na base da mesada? Os contratos com fornecedores e prestadores de serviço seguiriam na mesma linha, dado que na concepção do PT os escândalos foram fruto de ficção persecutória e, portanto, a tendência é a repetição.

Concorrer na seara de Lula e Bolsonaro é tarefa difícil. Mas não impossível se houver boa vontade para aceitar que uma pessoa normal no Planalto já é bem melhor que locatários do Palácio adeptos da teatralidade, da flexibilidade moral, da intimidade com a mentira, do sectarismo intenso e da aversão ao contraditório. Para dizer o mínimo.

Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771

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