domingo, 16 de janeiro de 2022

Dorrit Harazim: Liberdades

O Globo

Durante uns poucos dias, duas tribos humanas estiveram lado a lado numa rua de Melbourne, na Austrália, para clamar por mais justiça e mais liberdade. Pareciam comungar do mesmo ideário, apesar de a parceria ter durado apenas umas 80 horas — já foi muito, visto que tinham pouco em comum. A tribo mais antiga há muito deixara de atrair jornalistas, pois protestam desde dezembro de 2020, todo santo dia (as normas da Covid-19 permitindo), em frente ao antigo Carlton’s Park Hotel, transformado em centro de internação compulsória. Exigem a libertação de refugiados estrangeiros que buscaram abrigo na Austrália e ali estão confinados sem prazo para sair.

A segunda tribo, energizada e ruidosa, apareceu de supetão no mesmo endereço, com a mídia mundial. Juntou compatriotas, admiradores e simpatizantes do sérvio Novak Djokovic, um dos atletas mais celebrados do planeta. Como se sabe, o extraordinário tenista havia sido interceptado pela imigração australiana na semana passada e, por não estar vacinado nem apresentar a documentação adequada de exceção, fora encaminhado ao local de confinamento dos refugiados. Entre espetaculosas idas e vindas judiciais em torno da deportação ou não do astro, e de sua eventual exclusão do Aberto da Austrália, que se inicia amanhã (esta noite no Brasil), apenas uma das duas tribos permanecerá no local — a dos invisíveis.

Não é de hoje que a tensão entre encarceramento em massa e igualdade faz parte da história do país onde, quase 250 anos atrás, 11 navios britânicos despejaram um carregamento de prisioneiros comuns e transformaram aquelas terras em colônia penal. Em tempos mais recentes, a Austrália passou a ser vista como oásis para trabalhadores estrangeiros (um quarto de sua população é nascida no exterior), em parte pelo controle draconiano que exerce sobre suas fronteiras. Mas não para os que conseguem aportar naquelas terras vindos pelo mar, como refugiados desvalidos em busca de asilo ou trabalho. Estes se dão mal. Até 2014, eram despachados para uma prisão no deserto ou para a ilha penal de Nauru, sob condições sub-humanas denunciadas pela Anistia Internacional. Outros vão parar em centros como o de Melbourne, junto de estrangeiros não vacinados que tentam burlar as normas da imigração. Portanto o despacho do tenista para o hotel Park não seria propriamente uma novidade, fosse ele um desconhecido. Foi um estrondo porque naquele local nunca havia dado entrada tamanha celebridade, de 34 anos e patrimônio de US$ 220 milhões, com toda uma indústria de esporte e entretenimento atrelada a seu desempenho em quadra.

No terceiro dia de confinamento, por decisão judicial temporária, o “Djoker” conseguiu ser transferido para uma residência longe dali. O que levou seus fãs a festejar em júbilo uma dupla vitória, apesar de também temporária — do seu ídolo e do que consideram o direito à liberdade individual de dizer “não” à vacina. Na mesma praça, em tom mais acabrunhado, os que há anos protestam contra o confinamento dos refugiados esquecidos deixaram de cantar “Liberdade para todos”. A esperança de surfar no interesse súbito da mídia se dissolveu em silêncio, escreveu Cait Kelly no Guardian, sobre os que foram parar na Austrália em busca de segurança, não para jogar tênis. “Corta o coração ver tamanho interesse e atenção se dissiparem de novo”, ouviu de uma das ativistas. As várias entrevistas agendadas com os refugiados não aconteceram. Um interno declarou ao repórter nunca ter sido chamado pelo nome em nove anos de confinamento. Outro contou que ali não entra luz nem ar — as janelas são lacradas. Vegetam ignorados e esquecidos e tiveram seu sopro de esperança ao perceberem uma movimentação atípica. Talvez imaginassem que o interesse na rua era por eles.

A grande maioria dos australianos aplaudiu o rigor inicial do veto a Djokovic, movida por justa indignação à petulância antivacina do tenista, num país em que todos se submetem às restrições draconianas do governo no combate ao vírus. O próprio primeiro-ministro conservador, Scott Morrison, farejando a inclinação da opinião popular, tratou de inverter o curso. Fez-se de esquecido por ter concordado com a autorização inicial do estado de Victoria para a entrada do ícone. “Se vocês pensam que são os alemães que gostam de regras, apresento-lhes meus compatriotas australianos”, alardeou a reboque, pensando nas eleições gerais de maio próximo.

O saldo positivo do imbróglio deveria ser claro. A saber, que uma liberdade individual não pode e não deve se sobrepor aos direitos e liberdades coletivos. Extrapolou em muito o universo do tênis, estremeceu de leve o ar rarefeito dos privilegiados, sinalizou a futuros ex-governantes negacionistas que, enquanto durar a pandemia, convém ficar entocados em casa. De quebra, ainda oferece ao próprio Djokovic uma chance de fazer jus aos US$ 153 milhões que já embolsou em prêmios: que tal se interessar pela sorte dos refugiados confinados ad aeternitatem na Austrália? Para isso, nem precisaria se vacinar. Isso já seria pedir demais.

 

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