segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Miguel de Almeida: Bocage e o Rio de Janeiro

O Globo

O que personagens como Humboldt, Lebreton, Bocage e mesmo Napoleão têm em comum com o Rio de Janeiro e o Brasil?

De um jeito ou de outro, contribuíram para deixar o país menos mané, mais ilustrado e não tão sujeito às superstições trazidas pela ignorância e vocalizadas sob o manto religioso.

Só que poucas andorinhas não fazem uma nação.

Neste ano do Bicentenário da Independência, o Brasil talvez pudesse se encontrar com seu destino ao buscar onde ocorreram os descarrilhamentos e por que sempre voltamos tantas casinhas.

As datas por vezes ajudam a repensar os fatos, mas mesmo a História precisa contar com a sorte.

No Cinquentenário da Independência, embora Machado de Assis escrevesse sobre o “Instinto de Nacionalidade”, no jornal dirigido por Souzândrade em Nova York, o Império brasileiro incensava a figura de Dom Pedro II e sua miopia diante da Revolução Industrial.

Em 1922, ainda que houvesse a importante Exposição do Centenário, com mais de 3 milhões de visitantes, o governo de Epitácio Pessoa representava uma elite atrasada e avessa às ideias de caráter social. Aquele tipo de República cairia oito anos depois.

No sesquicentenário, em 1972, o Brasil vivia sob a ditadura militar, com o general Médici à frente da tentativa de eliminar à bala os adversários do regime.

Em 2022, Silas Malafaia… bem, ele é visto como autoridade, porta-voz de Cristo.

Antes de chegar a esse Estado de alma penada, espécie de miasma político, a História brasileira registra uma sucessão de oportunidades abandonadas à margem.

Eis algumas.

O naturalista alemão Alexander von Humboldt, integrante do Institut de France, indicou ao marquês de Marialva, embaixador português na França, o nome de Joachim Lebreton para reunir equipe de artesãos e montar um projeto educacional e artístico no Reino do Brasil. Era em torno de 1815, e a iniciativa ganharia o nome de Missão Francesa em razão da História oficial imperial.

Humboldt, à época o homem mais famoso do mundo, bajulado por Goethe e Thomas Jefferson, jamais estivera no Brasil, mas conhecia parte expressiva da América Latina. Suas viagens pela região o ajudaram a construir o conceito pioneiro da natureza como um único corpo, interligado; portanto, um desastre na Amazônia terá efeito no restante do planeta — tal constatação surge ao redor de 1802, 1803!

Lebreton, indicado por Humboldt, era secretário do Institut de France, organismo que juntava sob o mesmo teto diversas áreas do conhecimento. Por iniciativa de Napoleão, o instituto nascera sob o conceito da importância da interação das disciplinas. O corso enxergava longe.

A equipe montada por Joachim Lebreton trouxe ao Brasil desenhistas, arquitetos, artesãos de ofícios diversos, montados em conhecimentos atualizados. Em 1816, no Rio de Janeiro, nascia a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Quatro anos depois, seria aberta a Academia Real de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, depois batizada como Academia Imperial de Belas Artes.

Lebreton, em sintonia com Humboldt, trazia ventos de uma época que acreditava no conhecimento, na ciência, em ruptura com as amarras da religião, para forjar uma sociedade mais igualitária, socialmente justa, inspirada pelas ideias libertárias das revoluções nos Estados Unidos e na França.

Era uma tentativa válida de atualizar o Brasil, então à beira de uma Independência de figurino, em oposição frontal às ideias da Monarquia portuguesa. Lebreton, com seus artistas e artesãos, simbolizava o progresso rejeitado pela Coroa.

“O império em construção: Primeiro Reinado e Regências”, da professora Maria de Lourdes Viana Lyra, reconstrói a vinda da Família Real ao Brasil, em 1808, não apenas para fugir das tropas de Napoleão, mas na busca de perpetuação de seu poder absolutista. Vieram para o Brasil com o intuito de escapar das ideias revolucionárias sopradas com a Queda da Bastilha, em 1789.

Dom João VI estava aqui em fuga para se opor ao ideário iluminista que começava a varrer as monarquias absolutistas no Velho Continente. Veio com a incumbência de manter em terras tupiniquins um alfabeto de poder guilhotinado nas ruas parisienses.

Assim, não é de estranhar, veja bem, quanto tempo o Brasil demorou para abolir a escravatura, derrubar a Monarquia (pela mão dos militares!) e abrir sua primeira universidade.

Ah, Bocage: em 1786, o poeta português amou o Rio de Janeiro, quis ficar por aqui, segundo a lenda, mas foi expulso pelo vice-rei, Luís de Vasconcelos. O proto-Malafaia não gostou de versos tais:

Pavorosa ilusão da eternidade / Terror dos vivos, cárcere dos mortos / D’almas vãs sonho vão, chamado inferno / Sistema da política opressora / Freio, que a mão dos déspotas, dos bonzos / Forjou para a boçal credulidade.

Onde você leu “bonzo”, por favor, não leia bozo.

 

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