segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Miguel de Almeida: O genro, o bispo e o Rei James

O Globo

Numa noite perdida no tempo, em plena ditadura, estava numa casa de reggae com Júlio Barroso, ainda antes de ele criar o seminal grupo Gang 90 & As Absurdettes, quando a polícia entrou jogando cadeiras para o alto.

Era comum naquele período os camburões levarem para a delegacia, por puro sadismo, os artistas e sua plateia. Perda de tempo total, porque entre aquele povo, embora todos de oposição aos milicos, não havia qualquer tipo mais perigoso à ordem do regime. Nosso recurso era o deboche.

Em fila, naquela noite, os policiais faziam perguntas aos frequentadores da casa. Ao chegar a vez de Júlio Barroso, o policial, que deveria ter uns 30 anos, perguntou do nada:

— Você é comunista?

— Não, sou jornalista.

A gargalhada estourou na casa de reggae do baixo Pompeia, e a batida policial foi desmoralizada, porque logo se ouviram gritos de autoconfissões:

— Não sou comunista! Sou dentista.

— E eu sou balconista!

A ditadura caiu pela incompetência dos militares, abandonados pela parte civil da sociedade (os Luciano Hang da época), e por se transformarem num ridículo diário. A ironia mata. Incendeia. Difícil não associar  Sergio Moro à alcunha de “conje”. Ou se esquecer da pergunta matadora do ator Paulo Cesar Pereio a Leonel Brizola:

— Essa história do PTB com o PDT dá para explicar ou é como marca de batom na cueca?

O último ditador militar, general Figueiredo, saiu pelas portas do fundo do governo, mas antes vira sua autoridade crispada. Acossado por carestia e inflação (parece-lhe algo familiar?), e ainda por um mau humor recorrente (Bozo, Damares, Heleno), Figueiredo não suportou as palavras de ordem gritadas pelos estudantes numa manifestação contra seu governo. Para espanto até de seus companheiros de farda, se envolveu numa briga de rua, em pleno calor de Florianópolis. Foi salvo pela segurança atônita. Estava claro ali que a ditadura chegara ao fim.

Ele já havia dado a pista do destino de seu governo ao vituperar sua antológica declaração de princípios. Assim como o atual Bozo não está nem aí para a morte dos brasileiros caídos pela Covid-19, Figueiredo deixou claro:

— O cheirinho dos cavalos é melhor (do que o do povo).

À época, o apoio à ditadura minguara entre a população, e os milicos só se mantinham no poder por causa das armas e de algumas malandragens eleitorais. As pesquisas recentes indicam uma faixa de 23% de suporte ao atual canhestro governo. É normal. No final do regime militar, mesmo nos seus estertores, ainda existiam setores emprestando o ombro (em troca de favores). Onde há governo, qualquer um, sempre haverá um sabujo à disposição. Até que chegue a nova administração para também ganhar sua simpatia.

Colocando-se como atores políticos de qualidade, alguns pastores evangélicos, apoiados na isenção de impostos de suas igrejas (ao contrário dos artistas que pagam na fonte suas taxas), aterrorizam seus acólitos desavisados com o fogo do inferno para vender suas teses.

Sempre me fascinou a desonestidade intelectual dessa turma. Agora descobri o bispo Renato Cardoso, conhecido por ser o genro de Edir Macedo, da Igreja Universal. É uma espécie de Gepeto pentecostal.

Ao contrário da humildade exalada por Malafaia, que sabe onde cortar o cabelo, Cardoso vestiu a batina de teórico. Como fez no século passado J.E.Hoover, chefe do FBI, que enxergava comunistas até no Pato Donald, com a intenção de ganhar poder, o bispo Cardoso, sempre um genro, em suas intervenções procura deturpar a Bíblia e colocar palavras na boca do pobre Cristo. Ouvi-lo ou lê-lo é brincar de achar o jogo dos sete erros.

Como qualquer stalinista ou fascista, Cardoso parte de uma premissa errada. No caso dele, o preceito de que um cristão não pode votar em candidatos de esquerda. Em seu programa “Entrelinhas”, como ainda em textos no site da Igreja Universal, ele reitera cinco pontos para demonstrar que até os santos (Olavo?) concordam com seus prolegômenos.

Fico imaginando meu amigo Júlio Barroso lendo patranhas tais. Segundo Cardoso, citando a sua Bíblia, “o coração do sábio está à sua direita, mas o coração do tolo está à sua esquerda”. Por conta disso, sugere o bispo, Jesus Cristo foi o primeiro militante anticomunista da História.

Não é bem assim.

Na tradução do Rei James, de 1611, vista como belíssima (inclusive porque melhora a má redação de muitos escribas da Bíblia, lembrando que Jesus provavelmente era iletrado), para o mesmo trecho, está:

“O coração do sábio se inclina para o bem e o direito, mas o coração do insensato, para o mal e o injusto”.

Do mesmo Eclesiastes, versão Rei James: “No início, as palavras da sua boca são tolice e no final são loucura maligna”.

Não ria, eles sabem o que fazem.

 

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