sábado, 29 de janeiro de 2022

Rafael Soares: Pistoleiros ficha limpa

O Globo

Quando foi morto numa operação policial no interior da Bahia, em fevereiro de 2020, o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) Adriano Magalhães da Nóbrega era apontado pelo Ministério Público como o matador de aluguel mais letal e mais bem pago do Rio. Investigadores estimam em mais de uma centena a quantidade de vítimas que o ex-PM fez em duas décadas de carreira no submundo. Nóbrega, entretanto, nunca chegou a ser formalmente acusado da grande maioria desses crimes e morreu sem nenhuma condenação por homicídio nas costas.

O ex-PM não descobriu a fórmula do assassinato perfeito. Muito pelo contrário: indícios de sua participação em vários crimes abundavam, mas foram ignorados pela polícia. Ao longo da apuração que resultou no podcast “Pistoleiros”, lançado em dezembro passado e disponível no Globoplay, coletei provas da participação de Adriano em oito homicídios diferentes entre 2005 e 2011.

Num desses casos, a execução do bicheiro José Luiz Lopes, o Zé Personal, em 2011, a polícia já tinha provas substanciais contra Nóbrega semanas depois do crime: testemunhas apontaram, em depoimento, o ex-capitão como mandante do homicídio, e um de seus capangas mais próximos, cuja voz foi reconhecida por um homem que presenciou o crime, como um dos executores. De lá para cá, nada foi feito. O inquérito vagou por gavetas de autoridades e chegou a ser destruído por goteiras na delegacia. Até hoje, o caso segue em aberto.

Nóbrega não é um caso único. Ao ser preso pelos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o sargento reformado Ronnie Lessa foi apresentado à sociedade como um matador de aluguel profissional, concorrente do ex-capitão no mercado da morte. Só que, até então, ele nunca havia respondido por homicídio. Somente após sua captura, o MP conseguiu provas de que Lessa havia deixado um rastro de sangue sem ser incomodado: dados obtidos em suas contas de e-mail revelaram que, antes de diversas execuções que aconteceram nas duas últimas décadas e até hoje não esclarecidas, o PM fez buscas na internet por informações pessoais (nomes completos, endereços, CPFs) das vítimas. Agora, o MP quer retomar as investigações sobre esses crimes.

A situação dos matadores de aluguel de ficha limpa ilustra quanto o sistema de Justiça Criminal é falho no Rio: segundo um estudo do MP estadual, só 3,5% dos homicídios cometidos em 2015 no estado tiveram sentença no Tribunal do Júri quatro anos depois. Por outro lado, do total de casos analisados, 60% ainda estavam sob investigação, ou seja, ainda permaneciam sem solução, após quatro anos, e outros 20% já tinham sido arquivados.

Outro levantamento, do Instituto de Segurança Pública (ISP), revela que só 21,2% dos homicídios registrados no Rio em 2018 haviam sido solucionados pela Polícia Civil até o fim de 2020 — ou seja, quatro a cada cinco assassinatos seguiam sem esclarecimento dois anos depois dos crimes.

Os números e a trajetória de impunidade dos pistoleiros escancaram uma verdade inconveniente: as autoridades fluminenses pouco sabem sobre o crime organizado que age no estado. Diante das taxas de resolução incipientes, não é possível, por exemplo, determinar a participação de tráfico e milícia no total de homicídios no estado. Ou estimar o tamanho e o poder do mercado de matadores de aluguel que agem no Rio.

Se não fosse a pressão popular pela solução do caso Marielle, Nóbrega e Lessa provavelmente ainda estariam matando impunemente, abaixo do radar da polícia, do MP e da Justiça. O assassinato da vereadora — e a mobilização que lhe sucedeu — obrigou as autoridades a mexer numa parte do submundo do Rio até então intocada. Mas, claro, eles não eram os únicos atores nesse mercado. Quantos outros matadores de aluguel ainda permanecem nas sombras, beneficiados pela incompetência do Estado?

*Repórter especial do GLOBO

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