quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Roberto DaMatta: Notas de um janeiro chuvoso

O Globo

A chuva é o imprevisto mais rotineiro de nossas vidas. Maviosa como um adorável chuvisco, pode virar furiosa tempestade que não acaba, como a TV ou a luz, por meio do botão controlado por nossa vontade. Teimosa e inesperada, obriga a usar o guarda-chuva e impede grandes e pequenas coisas como ir à praia ou dar um passeio.

Nos bairros pobres, ela destrói e rotineiramente leva nas suas enxurradas as posses de grupos familiares inteiros. O que nos obriga a recitar a ladainha da ausência de políticas públicas...

O “tempo”, mesmo com “previsão”, tem seu imprevisível.

 A Operação Lava-Jato foi morta, mas a corrupção continua viva. O sistema legalizante foi feito para ela. Seria a roubalheira um mecanismo ligado ao que chamamos de “política” no Brasil e noutros lugares? Ou seria simplesmente um hábito ou costume de certos grupos e classes sociais, um aproveitar-se de cargos — um “arranjar-se”, como no atualíssimo livro de Manuel Antônio de Almeida...

Disse e repito: roubar o que é de todos (a “verba”, o dinheiro impessoal que é de todos) não é uma fraude, é uma pilhagem suscitada por uma oportunidade ou, quem sabe, um direito. Uma cota-parte: os fiscais têm direito a uma parcela do imposto pago pela população. A questão é o controle de um velho hábito aristocrático e republicanicamente legitimado?

Ficar velho é redescobrir que certos órgãos tinham múltiplas funções...

 Num filme antigo, um ditador latino-americano ensina para o mocinho (naturalmente americano e democrata, cuja ética médica obriga a operá-lo) a razão do seu autoritarismo: no seu país, explica, quando uma pessoa vê uma placa ordenando “não cuspa na calçada”, não há problema; aqui, porém, eles cospem na placa!

Como explicar que desobedecemos à lei sem compreender que, no Brasil, a lei não é feita para todos, mas para alguns grupos, categorias ou pessoas. Os negros e índios, os mestiços com cara de bandidos...

Quantas vezes você ouviu que a regra não havia sido feita para você? E quantas vezes verificou que a posição social (dada por dinheiro, cargo político, relação familiar, aparência e cor da pele — o tal “jeito”) não era coerente com a lei porque era incoerente com essa posição?

A lei, do mesmo modo que o trabalho, lido como castigo e pouco como vocação, foi feita “para negros”, como uma categoria geral que podia abrigar quem duvidasse de certos padrões e expectativas.

Você se lembra do samba carnavalesco de 1946 “Trabalhar, eu não”, cuja letra explica: Eu trabalhei como um louco / Até fiz calo na mão / O meu patrão ficou rico / E eu pobre sem tostão / Foi por isso que agora / Eu mudei de opinião? Foi composto por Aníbal Alves de Almeida. Almeidinha — sem Hegel, Marx e Engels — decifrou e carnavalizou o segredo do capitalismo nacional.

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