sábado, 5 de fevereiro de 2022

Ascânio Seleme: Todos querem Lula

O Globo

Há claros indícios de que a opção é manter Bolsonaro para que ele enfrente e seja derrotado pelo petista em outubro

Cada vez mais, grandes e distintos contingentes da sociedade brasileira parecem ter optado por Lula em 2023. Até dois meses atrás, ainda se ouvia aplausos a Bolsonaro em escritórios e auditórios da Faria Lima, em São Paulo. Antes do ano passado terminar, era possível identificar apoios sinceros ao presidente em alguns nichos do agronegócio mais moderno. No Congresso, os suportes ideológicos que obteve foram estridentes até o sete de setembro. Mesmo no Judiciário, Bolsonaro contou com alguns simpatizantes declarados. Hoje, iniciado o ano eleitoral, o silêncio é dominante. Mais do que isto, há claros indícios de que a opção é manter Bolsonaro no páreo para que a vitória seja de Lula.

A blindagem em torno de Bolsonaro nos tribunais superiores e mesmo no Congresso é o mais evidente sinal de que preservar o mandato do presidente significa ajudar a consolidar a candidatura de Lula. Explico. Entre os parlamentares, todos sabem muito bem como é fácil e vantajoso trabalhar com Lula. O ex-presidente sabe dividir poder e compartilhar responsabilidades. Com Bolsonaro foi um parto. Ele só cedeu quando a casa já estava caindo. E, mais, o presidente não é confiável. Nunca foi, e os parlamentares que conviveram com ele por 30 anos sabem disso. Se fosse reeleito, poderia facilmente trair sua base. Para o Congresso, Ciro mete medo, Moro é uma incógnita e a terceira via não existe. Por isso, o melhor mesmo e o viável é Lula.

No Supremo Tribunal Federal, pelo menos sete ministros também trabalham com a certeza que o melhor a fazer é deixar este ano escorrer, com Bolsonaro na cadeira, mesmo que seja sofrido e cause ainda alguns danos à sociedade. Dois deles, André Mendonça e Nunes Marques, foram indicados por Bolsonaro e ainda vivem o período de lua de mel com o presidente e vão defendê-lo com a tranquilidade dada pela boa vontade dos demais. Os outros cinco expressam esta opinião com alguma reserva, mas nos bastidores admitem que a blindagem que os tribunais fazem em torno de Bolsonaro não significa respeito ou apoio ao presidente. O que se quer é manter Bolsonaro no cargo para que ele enfrente e seja derrotado por Lula em outubro.

Fora Luiz Fux, que preside o tribunal, e desta posição o melhor é não fazer muito barulho; Rosa Weber, que se ampara sempre em seu dogmatismo; Alexandre de Moraes, relator dos casos que envolvem o presidente e sua família; e Cármen Lúcia, que não gosta e não participa de conversas paralelas, os demais estão convencidos de que Lula vence a eleição talvez ainda no primeiro turno se a candidatura de Bolsonaro for mantida. Para isso, seu mandato não pode ser interrompido e seus direitos políticos devem ser por ora preservados. O ajuste de contas virá depois, quando o capitão voltar para a planície.

Mesmo o procurador-geral Augusto Aras, conhecido por seu reiterado protagonismo na blindagem do presidente, sabe agora que é melhor mesmo segurar Bolsonaro no cargo até a eleição. Não porque descobriu isso de repente, mas sim porque gosta de fazer política e vem conversando com gente do PT. Um de seus interlocutores é o senador pela Bahia Jaques Wagner. Aras é baiano, conviveu muito com Wagner ao longo dos anos e mantém com ele uma relação cordial. Quando o PT era governo, Aras já estava na PGR. Segundo um procurador que o conhece bem, Aras é um “bolsonarista fingido”. Ele é governista, não importa o matiz ideológico.

Este é o cenário do momento. A blindagem do presidente deve ser avaliada levando-se em conta este contexto. Verdade que tudo pode desmoronar se o inesperado ocorrer, como observou Merval Pereira na sua coluna de volta das férias, e Bolsonaro renunciar para concorrer a um mandato legislativo e manter o foro privilegiado. Aí a história será outra. E até mesmo o vice Mourão, que hoje procura um cargo para disputar no Rio, será relevante porque então estará ocupando a principal cadeira do Planalto. A hipótese é difícil, até porque foro não dará a Bolsonaro segurança. Muita gente, em todas as instâncias da Justiça, espera com ansiedade a hora de lhe entregar a fatura.

Sigilo obsceno

Que diabos de segredos tem um presidente como o brasileiro que não possam ser revelados? País periférico, em paz com os seus vizinhos e com o mundo, o Brasil não se envolve em conflitos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Manter sob sigilo gastos de cartões corporativos em nome da segurança nacional é de uma tolice sem tamanho. Parece que se quer esconder despesas escusas e ilegais. Não sei se é o caso, mas é certo que um presidente terá sempre de fazer gastos altos até mesmo quando está em férias. Exemplo de Bolsonaro neste início de ano em Santa Catarina. Mesmo em férias, o presidente continua mobilizando todo o aparato que dá segurança e amparo ambulatorial obrigatório em seus deslocamentos. Estes custos podem ser pagos com cartão corporativo, mas não precisam ser secretos. É hora de cobrar dos candidatos que acabem com este sigilo obsceno.

Sem vergonha

A maior vergonha do PT foi de jamais ter conseguido reduzir os juros a um patamar decente, de país estabilizado. Petistas sofriam cada vez que o Banco Central sob Bolsonaro reduzia a taxa. “Por que não fizemos isso? Que erro!”, lamentavam. Com os juros de volta aos dois dígitos, todos agora dormem tranquilamente. Esse combustível não vai mais alimentar a campanha de Bolsonaro

Justiça seja feita

O presidente e o deputado que vazaram inquérito sobre invasão de hackers ao TSE não serão indiciados por terem foro privilegiado. O tenente-coronel que estava presente na sala enquanto os dois falavam pode ser arguido, mas acabará dando em nada ou sendo encaminhado para a Justiça Militar, que você sabe como funciona. Sorte mesmo teve o intérprete de libras, que estava de folga no dia. Se não, acabaria sobrando para ele.

Cada coisa

Tem coisas que nem precisam ser desmentidas, tamanha a sandice. Mas nesses dias, melhor mesmo não facilitar. Por isso, a agência de checagem Lupa destruiu categoricamente a fake que dizia que a vacina contra a Covid transformaria as pessoas em “antenas” de sinal 5G. Pode?

Soltem o Cabral

Dos mais de 40 políticos denunciados pela Lava-Jato, 21 foram condenados, mas apenas um continua preso. O ex-governador Sérgio Cabral permanece detido em regime fechado num presídio de Bangu. Não significa que Cabral seja mais criminoso do que Eduardo Cunha ou Geddel Vieira Lima, embora suas penas tenham ultrapassado 340 anos. Dos que já saíram, quase todos têm alguma pretensão política neste ano eleitoral. Os que não perderam ou recuperaram seus direitos políticos, como Lula, já anunciaram suas candidaturas a cargos eletivos. Outros, como Cunha, impedidos de concorrer, lançaram parentes. No caso do ex-deputado mais odiado da História do Brasil, será a filha Danielle, que disputará uma cadeira na Câmara Federal.

Medo maior

O que assusta mais, a volta de Dilma Rousseff, Guido Mantega e Franklin Martins para o Ministério num eventual governo Lula ou a permanência de Ciro Nogueira, Onyx Lorenzoni e Damares Alves no caso da reeleição de Bolsonaro? Dos três primeiros você está livre. Lula já disse que tem gente nova no pedaço.

Escravo

João Doria tornou-se escravo da sua candidatura a presidente. Ele ficou tão protagonista na disputa que acabou fechando todos os caminhos de volta. Mesmo que quisesse, não conseguiria mais ser candidato a um segundo mandato em São Paulo. Se acabar desistindo da candidatura depois do prazo de desincompatibilização, poderá concorrer a uma vaga dificílima de senador ou a uma cadeira na Câmara.

Nosso Rio

Jovem foi atingido por bala porque sua mãe errou uma rua e entrou em área controlada pelo tráfico em Cordovil. O episódio ocorreu na Estrada do Porto Velho, um local tranquilo até dois anos atrás, segundo a polícia. Aí você ouve que o Rio perdeu a batalha contra a violência. Na verdade, quem perdeu a batalha foram os governos, nas três esferas, que a cada dia abandonam mais um pedaço do seu território para o tráfico ou para a milícia. Como se viu no episódio da chacina do congolês Moïse Kabagambe, a milícia domina até mesmo quiosques na Barra.

Um comentário: