terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Carlos Andreazza: O caso Moïse

O Globo

Moïse Mugenyi Kabagambe foi torturado e morto em 24 de janeiro. Naquele mesmo dia, depôs Jailton Pereira Campos, atendente no quiosque Tropicália. Não sabemos o que declarou. Sabemos que, a 1º de fevereiro, prestaria novo testemunho, este conhecido — e sob a intenção de “retificar o termo anterior”. A razão: “esclarecer melhor os fatos narrados”, pois não teria conseguido “extrair de forma clara o seu depoimento”.

No vídeo conhecido sobre a barbárie, Jailton aparece, pedaço de pau na mão, em conflito iminente com Moïse. Teria sido ameaçado pela vítima, que, a certa altura, pega uma cadeira como arma. Outro dado relevante: Moïse abre a geladeira. Essa é igualmente a base narrativa dos depoimentos dos três matadores. Jailton teria sido ameaçado. Moïse, alterado, queria pegar cerveja, e não lhe fora permitido.

Ninguém poderá dizer que se trata de estratégia combinada. Mas é incontornável que, do ponto de partida em que Moïse seria agressor incontrolável, avança-se — nos quatro depoimentos — à configuração dele como tipo violento, beberrão e drogado, que estaria dormindo na areia e “queria subtrair bens do quiosque”. Seria ainda mentiroso. Diz Jailton “que o proprietário [do quiosque] não devia nenhum valor à vítima”.

Nenhuma novidade. A história de crimes como esse é também a história das tentativas de criminalizar a vítima. E a tentativa, nesse caso, beneficia-se das relações informais de trabalho. Ninguém tinha contrato; tudo acertado com base em diárias calculadas por produtividade. Não seria difícil que, desse arranjo arbitrário-precário, saíssem desacordos. Moïse achava que lhe deviam. Como provar?

Como cobrar?

Uma informalidade a serviço da lógica miliciana de exploração. Relata Jailton que “os envolvidos [os assassinos] não eram seguranças do quiosque”. Dois dos quais, porém, a serviço de um policial, controlador do quiosque contíguo, o Biruta, e de uma barraca na praia. Não eram seguranças, não formalmente, como formalmente nada eram; mas, submetidos a regime de trabalho desregrado e às exigências de esquema autoritário, estimulados a mostrar serviço mercenário e ganhar pontos, não estariam ali também para zelar pela “ordem” de espaço que tem dono?

Moïse foi cobrar? Como cobrar? Em território sob mando? Moïse foi barbarizado para servir de exemplo?

A Orla Rio confirma a doença e admite a falência do Estado. O quiosque Biruta tinha ocupante irregular. Terá o operador responsável transferido o negócio — tudo por fora — no amor, ou sob coação? E que solução administrativa pacificaria isso? Ficará pacificada, em metro com senhor, a gestão do espaço doravante pela família de Moïse?

Um dos incômodos fundamentais na trama está no tempo que se passou entre o crime, numa segunda, e seu conhecimento pela sociedade, só no final daquela semana. Levaria ainda mais até que as imagens fossem divulgadas. Esse período de cegueira temporal — que abrange o intervalo entre o testemunho inicial de Jailton e sua retificação — planta desconfiança: quem garante a integridade do vídeo?

A ausência dessa resposta não invalida a constatação: o segundo testemunho de Jailton deu-se já sob os potencias efeitos — a possível influência — das imagens, moldado talvez pela leitura enviesada daquele corte. Terá sido esse depoimento condicionado pelo texto do vídeo conforme circulara? Diz Jaiton “que as imagens comprovam o seu relato”. Moïse abre a geladeira, né? Ladrão bêbado.

Nenhum depoimento é mais esclarecedor que o de Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, vulgo Dezenove, um dos assassinos que trabalhavam para o policial. (O outro é Tota, Brendon Alexander Luz da Silva, atendente na Barraca do Juninho.) O matador é claro: o quiosque Biruta pertenceria ao policial Alauir. Aleson era cozinheiro e garçom ali. No dia do crime, contudo, “estendeu seu turno para tomar conta do local”, uma vez que estaria havendo “muitos roubos e furtos na região”. Não era segurança, mas seu escopo de atuação contemplava cuidar da área, no que decerto cabia evitar problemas no pedaço.

Moïse seria um problema, pois começara a “apresentar um comportamento fora do normal”, a “ameaçar”, a “consumir ainda mais bebida alcoólica”. Aleson envolveu o Corpo de Bombeiros, ao afirmar que sua vítima, na noite anterior, arrombara um posto da corporação para dormir e que um bombeiro procurara Moïse para questioná-lo, mas que, ao ver o estado do invasor, desistira.

Como é?

Até agora, o Corpo de Bombeiros não se pronunciou; mas deveria, já que vai enredado numa trama atroz que desonra um morto. Onde está o bombeiro que confirmaria o arrombamento?

Aleson já foi pego em ao menos uma mentira, pois contara ter ido à Defensoria Pública de Bangu, dois dias após o assassinato, e informado sobre sua participação no crime, manifestando o desejo de se entregar, orientado, no entanto, a ir embora, pois nada haveria em seu desfavor. A Defensoria nega que isso — seria um escândalo — tenha ocorrido.

E o Corpo de Bombeiros? Ficará mesmo em silêncio?

O irmão da vítima, em entrevista à CBN, afirmou que Moïse dormira em casa e que fora ao quiosque cobrar dívida. Morreu — tudo indica — porque, numa cidade cujo chão público tem proprietário, avaliou-se que seu corpo preto poderia servir para demarcação.

 

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