terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Carlos Andreazza: À vontade para radicalizar

O Globo

Desde há muito trato da pandemia — especificamente da vacinação — como campo ideal para o exercício da radicalização bolsonarista; território perfeito à produção-circulação de teorias conspirativas.

Claro que há outros chãos favoráveis ao fluxo do discurso sectário com vista à eleição de 2022. Por exemplo: a desinformação fidelizante difundida pela campanha do voto impresso, cruzada pela suspeição das urnas eletrônicas, uma empresa pela dilapidação do sistema eleitoral; mas cujos limites logo armariam os freios, o maior dos quais o fato de existir um inquérito instaurado de ofício, dependente apenas da caneta de Alexandre de Moraes.

Os movimentos nesse processo, muitos sob a vara da PF, assustaram.

No caso da pandemia, inexistente um inquérito como o governado por Moraes (em que o STF é vítima, acusador e juiz), a criminalização da conduta do presidente dependeria de gestões da PGR. Bolsonaro está blindado neste flanco — e sabe. A CPI da Covid, que lhe deu muito trabalho, não terá como se desdobrar sem Aras. (Lira, na Câmara, é seu sócio.) Daí por que deite e role. Daí por que, ante a vacinação de crianças, sinta-se ainda mais à vontade para acelerar o esforço por desacreditar vacinas.

Não é novidade que essa pregação desinformante opere em movimento pendular: com Bolsonaro de um lado lançando o pêndulo ao extremo dos ataques à vacinação (ou aos decretos de distanciamento social), com o que abastece sua base social, também por meio de confrontos com governadores, os tiranos ladrões da liberdade; de outro, ante a imposição do mundo real, levando o pêndulo até mesmo ao lugar em que o governo tentaria competir pela liderança do programa de vacinação, seja porque acossado por Doria, que começara a vacinar antes, seja pela repercussão da CPI.

Padrão.

O mundo real sempre se impõe. E então Bolsonaro afrouxa a corda. Até que as condições a um novo ciclo embusteiro se deem, e o bolsonarismo, liderado pelo presidente da República, dispare-se, sentindo-se seguro, em novo impulso de radicalização. O esquema se repetiu quando da vacinação de jovens. E agora, com as crianças. Pêndulo vai. O mundo real se impõe. Pêndulo vem. Uma, duas, três, mil vezes — a imposição do mundo real. Mas não tarda a que se apague — a que seja apagada — para a constituição artificial de um novo palco de combate, de uma nova forja à confecção de inimigos imaginários.

Ou não teremos visto o ministro da Saúde, personificação desse movimento pendular, falar — não faz duas semanas — em 4 mil mortes comprovadamente relacionadas à vacinação? Uma informação errada, mas não um erro.

Padrão.

Como Bolsonaro — aterrando a realidade — insiste na farsa de que esteve certo, pensando na saúde da economia brasileira, quando bradou contra a prioridade das vacinas e a necessidade de restrições à circulação de pessoas, lembremos do último trimestre de 2020. Era o momento decisivo para o fechamento de contrato com a Pfizer; para que se iniciasse a vacinação ainda naquele ano, e já estava evidente que a reativação orgânica da economia só viria com a vacinação em massa. Mas o governo foi negligente e fabricou impedimentos.

Por quê? Porque iria “surpreender o mundo”, totalmente comprado na tal imunidade de rebanho. Para que gastar com vacinas? A cloroquina como placebo que empurraria o povo às ruas, do que se colheria o produto “contaminação em massa”, situação em que, sem parar a economia, chegar-se-ia ao fim da pandemia naturalmente.

“Baixíssima probabilidade de segunda onda” em 2021 — dizia, naquela altura, um secretário de Paulo Guedes. Era a aposta no declínio da peste, imunizados os brasileiros por contágio, paralelamente à economia que se recuperava em V. Aí está. Daquela mentalidade derivando também, vacinas em segundo plano, a suspensão do auxílio emergencial entre janeiro e abril — janeiro de 21, aliás, o mês em que o governo brincaria de TratCov na Manaus sem oxigênio.

O mundo real se impôs. Bolsonaro, porém, continua a atribuir a falência da economia aos outros. E Queiroga quer ser reconhecido como o ministro que acabará com a pandemia.

Atenção à nova base de lançamento para as mentiras bolsonaristas: a variante Ômicron. A maneira agressiva como contamina consiste na própria definição de paraíso para a pregação antivacina; a moda agora sendo acusar que as pessoas, mesmo com três doses, continuam contraindo o vírus. É a materialização do inimigo imaginário, como se vacinados não pudessem se contaminar. E como se fato não fosse que — mesmo diante da violência dessa mutação e da explosão no volume de infectados — a vacina minimiza a gravidade dos casos e diminui imensamente o número de vítimas fatais.

Não adianta.

Bolsonaro domina o zap profundo, a cuja alimentação servem imposturas como a de Queiroga, e está à vontade para radicalizar; o único risco contra si, em 2022, sendo o de perder a eleição. Radicalizará para ter lastro competitivo. A estratégia: investir no campo de embate da pandemia, navegando a Ômicron, e se aproximar ainda mais dos seus 20% do eleitorado; apostar na “operação Ciro Nogueira” da máquina de modo a que a gestão patrimonialista do Orçamento lhe traga mais alguns pontos; e confiar que a mobilização do sentimento antilulopetista, talvez adormecido, mine em parte a posição de Lula.

 

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