O Globo
O livro “Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese Student Soldiers”, de Emiko Ohnuki-Tierney, não é volumoso (265 páginas na edição em inglês) nem recente (2007). Em compensação, é impossível esquecê-lo. A obra corrige de forma definitiva um dos clichês da Segunda Guerra mais difundidos no Ocidente: que os jovens kamikazes recrutados nas melhores escolas do Japão para pilotar voos suicidas eram um bando de fanáticos nacionalistas honrados em se explodir pelo bem da pátria e do imperador. A correspondência reunida no livro revela, ao contrário, os medos, angústias e ambivalências dessa geração empurrada à força para a morte. Nem voluntários eram. Seus solilóquios manuscritos em páginas de diários, ou singelas cartas para namoradas, pais, companheiros, são dilacerantes. Demonstram o que já deveríamos ter entendido desde que nos tornamos bípedes: guerras são um horror, qualquer uma. Vale para a Ucrânia.
Os Estados Unidos continuam sendo uma nação
relativamente distanciada desses horrores, em parte porque a lembrança nacional
mais recente de um conflito militar, em casa, data da Guerra Civil de 1861. Foi
para encorpar essa desmemória coletiva que um acadêmico da Califórnia criou o
Center for American War Letters Archives, museu interativo on-line dedicado a
coletar correspondências privadas e todo tipo de material guardado por
combatentes. Idealizado por Andrew Carroll, diretor de um centro de estudos da
Universidade Chapman, o espaço virtual de acesso fácil e navegação amigável
pretende, no futuro, cobrir desde a Guerra de Independência (aquela que Eduardo
Bolsonaro, em palestra nos Estados Unidos, confundiu recentemente com a
Revolução Francesa) até os dias atuais.
Por enquanto, a “ala” do site de conteúdo mais
robusto reúne cartas, áudios, depoimentos e memorabilia doados por veteranos da
Guerra do Vietnã. Ali deparamos com momentos de fé, humor, saudade,
desesperança, camaradagem, medo de ser esquecido. Numa dessas peças, garimpada
pelo New York Times, ouve-se o coronel George S. Patton júnior (não confundir
com seu espaçoso pai, o generalíssimo da Segunda Guerra) dirigindo-se à esposa
Joana. É lacônico seu tom de voz na fita gravada em 1968, um dos anos mais
carniceiros no Vietnã. “O comandante está vivo neste momento. Mas um braço foi
arrancado, e ele perdeu o outro antebraço...”, relata Patton júnior 24 horas
após uma granada inimiga ter matado um soldado e ferido outro. “A explosão o
dividiu em dois, literalmente em dois.”
O distanciamento físico entre a população
dos Estados Unidos e as muitas ações militares americanas pelo mundo, com
oceanos e continentes inteiros a separá-los, favoreceu a “normalização” do
desenrolar de guerras intermináveis e inúteis. Até 2010, os Estados Unidos
dispunham de um tapete de 1.180 bases militares cobrindo o planeta. A
justificativa oficial para essa onipresença era o legado deixado pela Segunda
Guerra, que acabara 70 anos antes. “Alguém realmente acredita que, se fecharmos
nossas bases na Alemanha, a Rússia vai invadir?”, indagava à época o colunista
do New York Times Nicholas Kristof. Com o fim da Guerra Fria e a derrocada do
império soviético, essa presença foi sendo reduzida para atuais 750 bases — sem
contar as mantidas em sigilo, é claro.
Pois eis-nos de volta a algo que parecia
inimaginável num ontem ainda recente: um embate capaz de resvalar, por acidente
de percurso, num confronto direto entre forças das duas maiores potências
militares. Por mais que o presidente Joe Biden afirme e confirme que em
hipótese alguma enviará um único soldado aquartelado na Europa para combater na
Ucrânia, a História não lhe dá razão.
A partir do maciço paredão bélico russo
exibido na região, ficou evidente que um conflito armado na Ucrânia em tudo se
assemelharia a uma guerra convencional, com seu corolário de horror também
convencional. Não parece sobrar mais espaço para operações cirúrgicas pontuais
nem ameaças de represálias financeiras. Morreriam os de sempre. “Perdedores” e
“otários”, como o ex-presidente Donald Trump designou vilmente os soldados
tombados na Primeira Guerra e enterrados no cemitério americano Aisne-Marne, em
Belleau, norte da França.
Embora as mentes humanas sejam o único
instrumento do universo capaz de refletir sobre o sentido da vida, cá estamos
novamente no umbral de uma guerra.
Não entendo nunca alguém,em sã consciência, programar estrategicamente uma guerra.
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