sábado, 26 de fevereiro de 2022

Eduardo Affonso: Hoje era para ser carnaval

O Globo

Hoje era para ser carnaval. Haveria foliões por todo lado, e as Defensorias Públicas, mídias ninjas e afins já teriam colocado o bloco na rua. Depois de cancelar marchinhas e adereços de índio, de cigana, talvez investissem contra o etarismo estrutural mal disfarçado na expressão velha guarda (da Portela, da Mangueira, do Salgueiro) ou pedissem o banimento da Terça-Feira Gorda (óbvia manifestação de gordofobia). Ao longo da semana, seria a vez de problematizar o desfile das campeãs (deplorável elogio à meritocracia, que desconsidera e naturaliza a desigualdade entre as escolas) e o reinado de Momo na Marquês de Sapucaí, com o Império Serrano, a Imperatriz Leopoldinense (evidência da perpetuação dos valores da elite aristocrática, monárquica, escravagista). Haveria uma infinidade de Fridas nos blocos progressistas da Zona Sul e negas malucas a mancheias (com palhaços, aqualoucos, travestis e melindrosas) nos blocos populares do Centro, do subúrbio, da Zona Norte, da Zona Oeste.

Hoje era para ser carnaval, mas ainda circula entre nós um vírus que provoca quase mil mortes por dia. Deveríamos estar, todos, mascarados, mantendo o distanciamento social, com a fantasia de que amanhã tudo voltasse ao normal. Mas pouco mais de 70% da população está totalmente vacinada — e nem por isso imune a novas variantes. Melhor a gente se guardar para quando a pandemia passar.

Hoje era para ser carnaval, mas não em Petrópolis, onde ainda há famílias em busca de seus desaparecidos, com pouca esperança de que estes não venham a se juntar à estatística dos mais de 200 mortos. Evitar as chuvas é impossível, mas seus estragos poderiam ser minimizados com obras de infraestrutura, reordenamento urbano, remoção de moradias em áreas de risco. Entretanto menos de 70% do valor destinado à contenção de encostas foi efetivamente aplicado. Para obras de manejo de águas pluviais, pouco mais de 5%. Cerca de 60% da verba do governo do Estado do Rio que deveria ter sido usada na prevenção de enchentes e deslizamentos continua intocada. Só um terço das unidades habitacionais prometidas depois da tragédia de 2011 foi entregue. Centenas de desalojados das chuvas de 11 anos atrás ainda recebem aluguel social. Nenhum gestor foi ou será responsabilizado. Segue o baile.

Hoje era para ser carnaval, mas há uma guerra em curso — um país invadido, dezenas de milhares de civis em fuga (o número pode chegar a 1 milhão). Um conflito em que ou ocorre uma escalada imprevisível ou se abandona a Ucrânia à própria sorte (a opção “b” é a que consta do gabarito). Não haveria clima para festa — como não houve durante a Segunda Guerra, quando a folia minguou (o samba agoniza, mas não morre). Neste sábado sem o alarido de carmelitas, bate-bolas e bolas pretas, há o silêncio cúmplice de Bolsonaro fazendo coro ao apoio descarado da esquerda ao uso da força (o antiamericanismo de sempre se juntando ao cordão do antiamericanismo de ocasião).

E era para ser uma manhã — tão bonita manhã — de um sábado de carnaval.

 

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