domingo, 27 de fevereiro de 2022

Elio Gaspari: Putin já foi o motorista Vladimir

O Globo / Folha de S. Paulo

Outro dia, antes do início da guerra na Ucrânia, o jornalista americano Thomas Friedman escreveu que o melhor lugar para se acompanhar a crise é tentando entrar “na cabeça de Vladimir Putin”.

Diversas pessoas já tentaram mapear essa cabeça, da alemã Angela Merkel à ex-secretária de Estado americana Madeleine Albright. O presidente russo é frio como cobra.

Em dezembro de 1989 ele estava na sede da KGB, em Dresden, na falecida Alemanha Oriental, quando uma multidão se aproximou da casa. Ele foi para o portão, disse que era um intérprete e recomendou que fossem embora, do contrário seus compatriotas atirariam. Deu certo, mas não havia atiradores.

Dois anos depois a Alemanha Oriental se acabara, a União Soviética derretera e a Rússia perdera cerca da metade de seu Produto Interno. Putin havia voltado para São Petersburgo e trabalhava com o prefeito da cidade. Para fechar o orçamento familiar, fazia bicos como motorista. Lembrando essa época numa entrevista, foi breve: “É desagradável falar sobre isso, mas infelizmente foi o caso”.

Esse anônimo burocrata, que viu o fim do império soviético e a exaustão do Estado russo, governa o país há 22 anos com mão de ferro. Fortaleceu a economia e reequipou suas Forças Armadas. (Em 1991 o quartel do regimento Preobrazhensky, criado no século XVIII e provado em todas as guerras russas, estava aos pandarecos. No dia de hoje, há 105 anos, os amotinados do regimento aderiram à Revolução Democrática de Fevereiro. Dias depois o czar Nicolau II abdicou.)

Vendo-se a figura de Putin nos salões da Rússia imperial, vale a pena lembrar que Vladimir já teve que trabalhar como chofer para fechar as contas.

Mourão e 1938

A referência do vice-presidente Hamilton Mourão ao xadrez diplomático de 1938, quando o primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain e muita gente do andar de cima inglês defendiam uma política de “apaziguamento” com Hitler, ecoa um livro que saiu em 2019 nos Estados Unidos. Chama-se “Appeasement” (“Apaziguamento”), do historiador inglês Tim Bouverie. Magnificamente pesquisado, ele mostra friamente como e porque Chamberlain construiu a política que o levou a Munique, onde entregou parte da Tchecoslováquia aos alemães. Tinha o apoio da cúpula militar e dos principais jornais ingleses.

Faltava-lhe a simpatia de um leão: Winston Churchill. Ele assumiria o cargo de primeiro-ministro em 1940.

Com o tempo, a conta do apaziguamento foi toda para Chamberlain. Bouverie mostra que não foi bem assim. Em julho de 1938, Lord Halifax, ilustre conservador e ministro das Relações Exteriores, disse a um ajudante de ordens de Hitler que gostaria de ver o Führer em Londres, sendo aplaudido ao lado do rei George VI. Em setembro, Chamberlain foi a Munique e acertou-se com Hitler.

Dias depois a tropa alemã ocupou parte da Tchecoslováquia e em março de 1939 tomou o resto.

Problemas para amanhã

Na melhor das hipóteses, a invasão da Ucrânia criou dois problemas para amanhã. Cada um para um lado da questão:

Putin deverá lidar com o movimento de resistência dos nacionalistas ucranianos.

Os países europeus deverão lidar com centenas de milhares, senão milhões, de refugiados em busca de fronteiras que estiverem abertas para recebê-los.

Aqui canta o sabiá

O presidente Joe Biden ameaça transformar Putin num “pária”.

Na terra das palmeiras, onde canta o sabiá, o chanceler Ernesto Araújo orgulhava-se dessa condição.

Prazo de validade

De quem já viu de tudo:

Putin tem no máximo uma semana para se livrar do peso de suas operações militares e iniciar conversações diplomáticas, mesmo que as conduza em segredo.

Em 1962, a crise dos mísseis soviéticos instalados em Cuba começou no dia 22 de outubro com o presidente americano John Kennedy anunciando o bloqueio naval de Cuba.

O mundo passou dias à beira de uma guerra e parte da liderança soviética deixou Moscou.

No dia 27, o embaixador soviético Anatoly Dobrynin encontrou-se com Robert Kennedy, irmão do presidente. O diplomata ofereceu a retirada dos mísseis e pediu que os americanos tirassem seus foguetes da Turquia (eram 15). Fecharam negócio, mas o lado turco do acerto deveria ficar em segredo, pois o país era membro da Otan.

No dia seguinte Moscou anunciou a retirada dos mísseis.

Shannon disse tudo

Thomas Shannon, ex-embaixador americano no Brasil e ex-subsecretário de Estado, disse tudo na sua entrevista à repórter Janaína Figueiredo:

— Ainda não vejo uma terceira guerra mundial. Mas teremos enormes tensões de segurança na Europa. Os EUA e a Otan tomaram a decisão certa de não transformar a Ucrânia num campo de batalha. Mas a Otan deverá repensar seus propósitos, e a União Europeia também. O que estamos vendo deve lembrar que a Rússia não pode ser esquecida e que ainda tem um poder global significativo. Isso deve ser entendido.

Em 1965 ele estava perto do olho do furacão quando o presidente Lyndon Johnson ordenou a invasão da República Dominicana. O Brasil apoiou a iniciativa e mandou tropas para lá. Ao final, a intervenção foi bem-sucedida.

Inexplicável

Está numa das gavetas de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, o ato de posse do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, eleito há dois anos.

Entre as suas atribuições, está a de realizar estudos, pareceres e outras solicitações encaminhadas pelos parlamentares sobre liberdade de expressão, monopólio e oligopólio dos meios de comunicação e sobre a programação das emissoras de rádio e TV.

Seus 13 integrantes foram eleitos em março de 2020, veio a pandemia e foi suspenso o trabalho das comissões do Congresso.

Num ano de campanha eleitoral, com a inevitável disseminação de mentiras, o funcionamento dessa comissão teria alguma utilidade, até porque seu congelamento é inexplicável.

Risco evangélico

Se o senador Rodrigo Pacheco acelerar a tramitação do projeto que legaliza a jogatina, aprovado na Câmara, e se o presidente Bolsonaro vier a sancioná-lo, vai-se embora um pedaço de sua base eleitoral evangélica.

Ele já prometeu vetar a iniciativa, mas tanto Bolsonaro como o ministro Paulo Guedes já flertaram com a ideia da jogatina em cassinos apelidando-os de resorts.

Planos de saúde no STJ

As operadoras de planos de saúde cuidam tão pouco de suas próprias imagens que podem ser acusadas de tudo e serão carimbadas como culpadas.

Está em curso no Superior Tribunal de Justiça um julgamento que trata da obrigatoriedade de cobertura para tratamentos que não estão arrolados pela Agência Nacional de Saúde. Por exemplo, um tratamento para crianças autistas.

Nada a ver. O caso dos autistas não está em questão e, quando estiver, terá caducado.

Ademais, o que o tribunal está decidindo é a obrigatoriedade da cobertura para tratamentos cientificamente comprovados. Se não há a eficácia científica (como é o caso da cloroquina, que alguns planos empurravam nos pacientes) não pode haver obrigatoriedade. E está decidindo a favor da clientela.

O julgamento foi suspenso por um pedido de vista. Até lá, o melhor a se fazer é brigar para que a lista da ANS reflita o progresso da ciência.

 

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