sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Fernando Abrucio*: Bolsonaro depende da polarização

Valor Econômico

Lógica da campanha bolsonarista não visa só a uma vaga no segundo turno, mas a cristalizar uma polarização paralisante na política brasileira

Diante da enorme impopularidade e das grandes dificuldades políticas que terá em 2022, o presidente Bolsonaro escolheu estratégias muito claras para a disputa eleitoral. Seu provável modelo de campanha, no entanto, vai além da conquista de votos para a chegada ao segundo turno. O bolsonarismo quer consolidar a polarização como lógica principal do jogo político brasileiro, haja a reeleição ou não. Isso causará não só uma disputa com um caráter bélico inédito no Brasil, como também poderá ter consequências para o próximo mandato presidencial.

Tomando como base o que ocorreu desde a criação da reeleição, Bolsonaro é um candidato atípico. Seu objetivo inicial não é liderar a disputa, mas obter algo entre 20% a 25% dos votos no primeiro turno, viabilizando desse modo seu lugar na rodada final. A montagem de suas estratégias passa, primeiro, pela aposta na fragilidade de qualquer tipo de terceira via. A fragmentação das candidaturas assim denominadas e a dificuldade de elas entenderem que o tema geral da eleição é um plebiscito contra o bolsonarismo têm facilitado a vida do atual presidente. Além disso, há o risco de uma vitória de Lula no primeiro turno, e a meta bolsonarista é evitar isso a qualquer custo, inclusive usando armas, digamos, heterodoxas de campanha.

A equação eleitoral montada por Bolsonaro é muito clara: é preciso manter o eleitorado mais fiel (em torno de 15%), ganhar uma pequena franja do eleitorado que não o rejeite tanto (algo em torno de 10%) e, não menos importante, já criar no primeiro turno um discurso de que ele pode vencer o PT de forma estrutural, e não só conjunturalmente. Ou seja, que se trata de uma batalha polarizada que deve excluir do jogo político uma série de grupos políticos de esquerda, centro-esquerda e mesmo parte dos liberais e centristas, além de diversos movimentos sociais vinculados às questões raciais, de gênero, culturais, científicos e de defesa de direitos sociais. Em poucas palavras, o bolsonarismo promete ao eleitorado a volta ao Brasil anterior à Constituição de 1988 - e uma parte do eleitorado quer retornar a um passado idílico.

Para tentar chegar ao segundo turno e consagrar a polarização como a estrutura organizadora da política brasileira, Bolsonaro pretende adotar três estratégias. A primeira é a da política dos valores, voltada principalmente para manter seu eleitorado mais fiel e um público conservador que não tenha perdido muito com a crise econômica e social. Isso porque parcelas do eleitorado que escolheram o bolsonarismo na eleição passada por conta de seu conservadorismo podem mudar de voto agora porque sua vida piorou muito - e há um conjunto grande de eleitores conservadores que já votou e pode votar novamente em Lula, ou então, por enquanto em menor medida, optar por candidatos como Doria, Ciro, Simone Tebet ou Moro.

A política dos valores é a estratégia central do bolsonarismo. Tal máxima não se refere apenas às eleições de 2022, mas, de forma mais profunda, vincula-se ao modelo de ação política que guia o populismo de extrema direita dos bolsonaristas. Por meio dela, pretende-se colocar Bolsonaro como o único candidato capaz de defender posições que seriam inegociáveis para parcelas da população, e que, dessa maneira, estariam acima da situação concreta que o país vive. É interessante notar que em pesquisas qualitativas há um contingente razoável de pessoas que diz que o Brasil está pior hoje do que no passado recente, mas ainda continua optando pela candidatura bolsonarista. O quanto isso vai perdurar até outubro, com mais dez meses de crise econômica e social pela frente, é uma incógnita.

Há três questões principais que ordenam a política dos valores. A primeira diz respeito à busca de eleitores no campo religioso, mormente os de filiação protestante. Embora Bolsonaro saiba que não terá o mesmo percentual de votos evangélicos que teve em 2018, quanto mais gente desse grupo conseguir fidelizar - talvez algo em torno de um terço ou um pouco mais -, mais chances terá de ir para o segundo turno. Por isso, a campanha bolsonarista vai estar repleta de discussões morais e religiosas, que aparecerão não só no discurso oficial do presidente e aliados, mas principalmente pelas vias transversas das redes sociais, com muitas baixarias e mentiras contra todos os outros candidatos, pintados como “imorais”. Vale frisar que essa estratégia não será usada apenas contra Lula, pois é preciso evitar que Ciro, Doria, Moro ou Tebet avancem em eleitores bolsonaristas de 2018 - e é inacreditável como as terceiras vias ainda não perceberam que se não se contrapuserem primeiramente a Bolsonaro, não terão chances de crescer eleitoralmente.

A política dos valores atua em mais duas questões. Uma é relativa ao ataque constante ao STF, que além de ser uma autodefesa da família Bolsonaro e outros gestores públicos frente a escândalos político-administrativos, ainda tem uma forte conotação moral. Isso vale não só para ter mais ministros “terrivelmente evangélicos” ou conservadores que protejam o país da modernidade. O discurso político contra o Supremo Tribunal Federal é direcionado também a um público conservador e autoritário cujo objetivo é ter um presidente sem contrapesos institucionais. Não se deve ignorar essa dimensão do eleitorado fiel do bolsonarismo.

A outra forma de atuação da política dos valores tem a ver com a noção bolsonarista de liberdade individual. Nela, pretende-se defender os cidadãos contra interferências indevidas do Estado, embora essa noção geral refira-se apenas aos assuntos tomados como verdadeiros pelo bolsonarismo. São os antivacina, por exemplo, ou setores específicos que ganham econômica e socialmente com a desregulamentação radical, como garimpeiros ilegais, colecionadores de armas e afins, e até mesmo milicianos e outras formas de crime organizado. O fato é que há um contingente razoável de eleitores influenciados por esses grupos. O bolsonarismo não os abandonará na eleição e vai inflá-los pensando no futuro político do movimento.

A política dos valores pode gerar uma fidelização de 15% a no máximo 20% do eleitorado, especialmente porque a crise econômica e social, além de elementos regionais (principalmente no Nordeste), são uma barreira ao crescimento eleitoral de Bolsonaro. Daí que entra uma segunda estratégia, que pode ser chamada de redução de danos. Ela implica jogar dinheiro pelo helicóptero e favorecer grupos específicos com medidas populistas para garantir direitos de curto prazo - e insustentáveis no longo prazo. O populismo legal e orçamentário vai rolar solto nos próximos meses

A estratégia de redução de danos frente à impopularidade presidencial vai significar fortalecer os laços com o Centrão para distribuir muitos recursos, perdoar dívidas, reduzir ou isentar impostos para alguns grupos e ainda garantir outros privilégios imediatistas com o intuito de fidelizar uma parcela do eleitorado não tão movida por ideologias. Mesmo assim, isso não vai retirar o sentimento negativo de quase dois terços do eleitorado que diz não votar em Bolsonaro em hipótese alguma, mas pode acrescentar votos suficientes para se chegar ao segundo turno. Claro que essa estratégia vai ter um efeito de médio e longo prazos desastroso para as contas públicas e para o funcionamento republicano do Estado. Porém, sinto informar que a era da irresponsabilidade completa em nome da eleição já começou.

Há ainda uma última estratégia: o ataque ao PT como ameaça de comunismo, volta da corrupção e, sobretudo, inimigo da família brasileira. Essa proposta tem dois objetivos. O primeiro é tentar evitar a vitória de Lula no primeiro turno e o segundo é preparar o terreno para uma eleição de segundo turno fortemente polarizada, mais do que qualquer pleito desde 1989, num nível que deixará a disputa de 2014 no campo dos contos de fadas. Na verdade, a lógica antipetista do Bolsonaro de 2022 não busca ampliar a sua ligação com outros partidos ou grupos sociais, aproximando-se de uma lógica mais centrista. O intuito é reforçar o modelo polarizador, marcando a posição bolsonarista como única alternativa para governar o país, com uma aliança eventual e financeira com o Centrão.

Neste sentido, esse segundo turno hipotético entre Lula e Bolsonaro é mais do que uma eleição. Trata-se em parte de um jogo político para assegurar a sobrevivência do bolsonarismo, seja ganhando ou sabotando a eleição, ou ainda garantindo a hegemonia da oposição nas mãos da extrema direita. Mas também é um jogo pessoal: é preciso polarizar e atemorizar para evitar a condenação de algum membro da família Bolsonaro.

A estratégia eleitoral de Bolsonaro deveria levar todas as forças contrárias a ele a buscar uma ampliação de aliados políticos e sociais. Isso vale tanto para o lulismo que busca o centro, como para as terceiras vias que precisam sair de suas bolhas. Todos esses grupos partidários têm de perceber que a lógica da campanha bolsonarista não visa apenas à garantia de uma vaga no segundo turno. Seu objetivo profundo é cristalizar uma polarização paralisante na política brasileira. Por isso, todos os não bolsonaristas, numa eleição em que mais de 60% do eleitorado diz que não votaria nunca em Bolsonaro, devem começar a conversar, e muito, com distintos públicos e atores para evitar que o país se torne ingovernável.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

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