terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Joel Pinheiro da Fonseca: Liberdade de expressão para quem?

Folha de S. Paulo

Quando uma opinião coloca em risco outros direitos, é evidente que ela deve ser tolhida

A liberdade de expressão é um valor inegociável, mas é preciso impor limites. Quando a expressão de uma opinião, ou ainda de uma informação falsa, coloca em risco outros direitos, como o direito à vida, é evidente que ela deve ser tolhida. Ninguém pode gritar "fogo!" em um cinema lotado.

A pandemia sublinhou o dilema. Notícias falsas tiraram vidas. Isolamento social, máscara, até vacinas; tudo foi alvo de fake news. Vidas foram perdidas em nome de uma fictícia liberdade de mentir e enganar.

E se aceitamos essa lógica com a pandemia da Covid, é evidente que devemos aplicá-la também a outros perigos. Nem só de Covid morre a humanidade. Machismo, racismo, LGBTfobia, fanatismo religioso, desigualdade social e tantas outras injustiças também matam. Não vamos fazer nada?

É uma visão ingênua —embora nada inocente— acreditar num debate público idealizado, em que o que importa são argumentos. Na realidade, opiniões refletem os conflitos de poder da sociedade, mal disfarçados por construtos teóricos.

Alguns buscam a igualdade e o bem comum; outros, manter seus interesses e privilégios. Quando um branco questiona consensos estabelecidos da pauta antirracista, isso não é liberdade de expressão, é racismo. Quando um autor (ou autora) cis questiona se mulheres trans devam ser tratadas como mulheres, isso não é liberdade de expressão, é discurso de ódio.

Esse tipo de questionamento "teórico" é uma ameaça concreta aos mais vulneráveis. Saber que ele existe no interior de algumas mentes retrógradas é odioso. Permitir que seja lido ou ouvido, criminoso. De nada adianta publicar ao lado um artiguinho contrário, que ninguém lerá, para criar um falso equilíbrio. Pessoas são mortas e violentadas nas ruas por causa desse tipo de discurso. Defender a tal liberdade irrestrita é defender que um jornal possa matar e violentar pessoas.

Os bons sentimentos dos magnatas do Vale do Silício e dos barões da velha mídia —que juram combater fake news e extremismo— só vão até a página dois. No momento em que têm que escolher entre verdade e lucro, é óbvio para que lado irão. Trump só foi banido das redes depois de perder a eleição. Joe Rogan segue veiculando seu podcast criminoso no Spotify. Da Folha, então, eu nem saberia por onde começar.

Enquanto reformas de longo prazo da educação não levarem o povo a abandonar seus gurus e charlatães e a seguir apenas intelectuais bem embasados, é preciso que nos resguardemos contra retrocessos. Quando empresas vacilam, o Direito Penal deve ser decisivo: separar o joio do trigo, dizer quem pode e não pode ter espaço nas plataformas e tomar medidas contra as que continuam a dar palco para discursos perigosos.

Poderíamos formar algo como um comitê de notáveis, apenas com referências indiscutíveis das ciências (exatas, biológicas e humanas), com a devida representatividade de todas as minorias sociais, para julgar previamente artigos, podcasts ou vídeos que possam ter conteúdo problemático. É isso ou a barbárie. Aliás, se nada for feito, e rápido, contra aplicativos como o Telegram, Bolsonaro pode até vencer as eleições. Estão vendo aonde leva essa "liberdade"?

Apenas o que defende o bem comum, que luta contra injustiças, que se pauta pelo rigor da ciência, que acompanha a marcha da História, deve ter espaço. Mentira e injustiça não têm espaço numa sociedade democrática. Fora isso, a liberdade de expressão deve ser irrestrita.

 

2 comentários:

  1. A extrema-direita quer liberdade de expressão para praticar crime.
    Sei.

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  2. Não tinha percebido a tal ''ironia'',nem sei se o artigo é este,provavelmente é.

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