terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Luiz Gonzaga Belluzzo / Gabriel Galípolo*: Os sobressaltos dos mercados

Valor Econômico

Conter a demanda é o efeito colateral indesejado e não o objetivo da elevação na taxa de juros

Em sua edição de domingo, 30 de janeiro, o Financial Times adverte em matéria de capa que os senhores das finanças estão temerosos diante das promessas do Federal Reserve de reverter paulatinamente os estímulos monetários que sustentam as exuberância nas Bolsas de Valores.

O mercado da riqueza é um fenômeno estranho à lógica convencional, sempre empenhada em formular deduções pela exclusão de contradições. Os processos de mercado não podem ser avaliados pela concepção de “ciência” que busca definir “valores de equilíbrio” extraídos de construções teóricas que empobrecem as subjetividades dos protagonistas, como aquelas formuladas sob o patrocínio das “expectativas racionais”.

As operações de mercado são viabilizadas por equivalências que simultaneamente significam percepções contrárias de valores. Seria uma ousadia convocar Theodor Adorno e sua Dialética Negativa para testemunhar que “palavras como problema e solução soam falsas na filosofia porque postulam a independência do pensado em relação ao pensamento precisamente lá onde pensamento e pensado são mediados reciprocamente”.

Ficamos com George Soros e seu conceito de reflexividade para investigar a natureza das relações entre os protagonistas dos mercados financeiros. “A característica distintiva da reflexividade é que ela introduz um elemento de incerteza no pensamento dos participantes e um elemento de indeterminação na situação em que participam”.

O preço da operação (equivalência) significa uma oportunidade vantajosa para renúncia de liquidez e aquisição do ativo para o comprador, e de renúncia do ativo em troca de liquidez para o vendedor. No mercado financeiro cada qual prevê o futuro a sua maneira. O comprador acredita que o prêmio esperado compensa o risco, ocorrendo o oposto com o vendedor. O benefício para o comprador será realizado caso o tempo entregue os ganhos esperados com a aquisição do ativo.

As percepções distintas de valores são possíveis no presente enquanto expectativas distintas, mas o futuro não proporcionará um resultado mutuamente vantajoso. O tempo irá dissolver as percepções de benefícios mútuos, revelando ganhadores e perdedores, ao confirmar, superar ou frustrar as apostas.

A economia colaborativa descrita na teoria clássica - sempre dedicada em atribuir vantagens mútuas nas trocas entre agentes mobilizados pelo desejo de consumo de utilidades diversas - é subvertida por movimentos de agentes com percepções inversas quanto à estratégia para realizar um desejo mútuo (e contraposto) de expandir seu valor em dinheiro.

As transações dependem da existência destas percepções contrárias quanto a expectativa de evolução do ativo a partir de um mesmo preço. Os preços são formados por convenções dos agentes de mercado, enquanto registro da expectativa média da maioria aferida pelo volume financeiro destinado às probabilidades.

Subitamente, o consenso das expectativas interrompe o funcionamento do mercado. A crise financeira de 2008 é um caso exemplar de elevação radical da preferência pela liquidez, capaz de interromper o funcionamento do mercado e atirar os ativos em uma espiral descendente. A generalização das apostas na desvalorização dos ativos promove o empenho coletivo dos agentes na venda, carente da demanda de agentes com expectativas contrárias (compradores). A expectativa de queda é capaz de realizar o próprio efeito temido, pois o aumento na oferta e queda na demanda dos ativos provoca sua desvalorização.

Ante a generalização das opiniões de mercado na venda de ativos e demanda por liquidez, as autoridades monetárias não apenas tentaram induzir a reversão das expectativas baixistas em altistas por meio dos instrumentos convencionais, como redução nas taxas de juros, mas passaram a desempenhar o papel de posição contrária, ofertando liquidez e demandando ativos, para viabilizar o funcionamento do mercado.

Em janeiro de 2022 os balanços dos bancos centrais da Europa, EUA, China e Japão somam um estoque de US$ 31 trilhões em ativos. A demonstração da possibilidade de o governo produzir a demanda e recursos para preservar o valor dos ativos no mercado financeiro, fomentou o debate e propostas quanto a possibilidade de o governo proporcionar demanda por emprego aos desempregados, ofertar recursos para suprir o déficit de serviços público ou utilizar o orçamento para conduzir a transição para uma economia ambientalmente sustentável.

Enquanto Biden investe em seu pacote de estímulo fiscal, Jerome Powell, de forma hesitante, mas progressiva, tem sinalizado a retirada dos estímulos monetários com redução nas compras de ativos, elevação na taxa de juro e perspectiva de redução do balanço do Fed. Foi suficiente para provocar a desvalorização do real e elevar a curva de juros no Brasil.

Na economia brasileira, com 29 milhões de subutilizados, 12 milhões de desempregados e o menor rendimento da série histórica do IBGE, conter a demanda é o efeito colateral indesejado e não o objetivo da elevação na taxa de juros. A elevação da Selic parece estar mais dedicada a aumentar o prêmio dos detentores de posições em reais para conter os efeitos da desvalorização cambial na inflação.

Os efeitos do aumento nos juros são sentidos de forma imediata nos ativos que sofrem marcação a mercado, pela penalização nos valores presentes estimados pelo desconto das receitas esperadas à uma taxa mais elevada, mas também promovem a desvalorização de ativos menos líquidos, as condições de investimento para as empresas e de consumo para as pessoas, enfim, a redução da rentabilidade dos negócios pelo aumento do serviço da dívida.

O conhecido estrangulamento externo, condicionante dos ciclos da economia brasileira, é reeditado em patamar mais elevado. No Brasil só é possível realizar política monetária em atenção às condições de emprego e renda do país quando as relações de prêmio e risco entre as moedas americana e brasileira não promovem inflação.

Em 1929 ou 2008, superar a crise exigiu avançar em novos caminhos na busca de maior capacidade em determinar o destino econômico e reafirmar o cuidado mútuo que significa a vida em sociedade. É hora de mudar o receituário.

*Gabriel Galípolo é presidente do Banco Fator e mestre em economia (PUC-SP).

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular de Economia da Unicamp

 

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