O Globo
A controvérsia do começo da semana sobre um
episódio do podcast Flow, em que o apresentador Monark defendeu a liberdade de
defender ideias nazistas e antijudaicas, mostra a dificuldade que temos tido em
travar debates produtivos num ambiente capturado pelas guerras culturais.
Caso algum leitor ainda não saiba, o Flow, um dos podcasts mais ouvidos do país, recebeu na segunda-feira os deputados Kim Kataguiri e Tabata Amaral. No meio da conversa com eles, o apresentador Monark defendeu uma concepção radical de liberdade de expressão que permitiria a difusão de ideias nazistas e antijudaicas e sua organização política.
A proposta causou celeuma. Durante toda a
semana, analistas e influenciadores discutiram o caso. Patrocinadores
anunciaram que suspenderiam publicidade no canal, antigos entrevistados
solicitaram a exclusão de seus episódios, e o apresentador terminou demitido,
mesmo depois de ter pedido desculpas e alegado que estava bêbado. O Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro atendeu a uma solicitação da Federação Israelita e
determinou que o episódio fosse retirado do ar. O Ministério Público Federal de
São Paulo abriu inquérito para investigar suspeita de apologia ao nazismo.
Embora o nazismo seja um caso-limite útil
para ilustrar uma defesa radical da liberdade de expressão, não é um exemplo
hipotético inócuo. O nazismo foi um regime genocida que matou milhões de
pessoas há menos de 80 anos. Embora os apresentadores do Flow cultivem a
postura de adolescentes drogados e irresponsáveis, eles têm uma
responsabilidade grande, que advém da audiência que conquistaram. Deveriam ter
entendido isso quando começaram a receber presidenciáveis no programa.
Uma parte da controvérsia se deve ao fato
de os limites da liberdade de expressão serem, neste momento, amplamente
debatidos no Brasil. As campanhas políticas que atacaram o Congresso e o STF e
defenderam uma intervenção militar e as que negaram a gravidade da Covid-19 e
desestimularam a vacinação nos forçaram a reconhecer que a liberdade de
expressão precisa ter os direitos humanos como limite.
Por outro lado, precisamos ponderar muito
bem. A liberdade de expressão é um direito basilar numa sociedade democrática.
É apenas por meio da livre expressão das ideias que conseguimos nos organizar
politicamente num regime plural e desenvolver a educação, a ciência e a
cultura, para ficar nas implicações mais evidentes. Estabelecer limites à
liberdade de expressão é matéria delicada, que deve ser feita com mão leve,
levíssima.
Será que os progressistas que querem impor
sanções e limites à difusão das campanhas da direita que atacam Congresso e STF
aceitariam que esses mesmos limites e sanções fossem também aplicados aos
grupos revolucionários de esquerda? O pau que dá em Chico também precisa dar em
Francisco.
É preciso também diferenciar a defesa de
ideias que violam direitos humanos do debate sobre até que ponto as leis devem
impor esses limites. Defender o nazismo e defender que o nazismo seja
livremente debatido não é a mesma coisa. Quando as marchas da maconha foram
proibidas pela polícia sob alegação de que faziam apologia ao crime, isso foi
corretamente percebido como abuso de autoridade, já que debater se as leis
devem permitir o uso de drogas não é a mesma coisa que usar drogas ou promover
o uso de drogas.
A defesa de Monark de uma concepção radical
de liberdade de expressão não é nem mesmo esdrúxula ou sem precedentes. Os
Estados Unidos, que todos consideram uma democracia liberal, têm proteções
constitucionais à liberdade de expressão tão amplas que protegem o discurso e a
organização política de grupos como a Ku Klux Klan. Lá, discursos e
manifestações nazistas e supremacistas brancas são indiscutivelmente
constitucionais. Defender que o Brasil adote uma postura parecida com a
americana não faz de ninguém um nazista.
Estamos perigosamente espremidos entre uma
inação que nos deixa vulneráveis e um ativismo atabalhoado. Se, de um lado, a
democracia precisa se defender do abuso da liberdade de expressão que ataca os
direitos humanos, esses limites precisam ser feitos com um cuidado que o debate
atual, capturado pelas guerras culturais, não parece estar sendo capaz de
fazer.
A ''livre expressão de ideias'' é louvável em qualquer democracia,estimular preconceitos passa longe disso.
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