terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Pedro Cafardo: Com sua licença, uma digressão otimista

Valor Econômico

Como no pós-guerra, “anos dourados” podem suceder a pandemia

A situação atual no mundo e principalmente no Brasil permanece tão assustadora que precisamos pedir licença ou desculpas antecipadas para fazer digressões otimistas sobre o futuro próximo.

Vamos a uma. Quem tem fé pode rezar e quem não tem, torcer para que o período pós-pandemia, ansiosamente esperado, seja semelhante ao pós-Segunda Guerra Mundial. A ômicron ainda atinge todo o planeta e aterroriza o Brasil em razão do estúpido negacionismo governamental. Apesar disso, as gerações atuais, depois de dois ou três sofridos anos da covid-19, talvez tenham a chance de saborear uma reprise dos “Anos Dourados” que sucederam o maior conflito bélico da humanidade, de 1939 a 1945, quando morreram 60 milhões de pessoas.

A guerra sanitária atual, felizmente, não terá essa mesma dimensão em matéria de mortes - até agora as perdas são de 5,8 milhões de pessoas no mundo. Mas há a possibilidade de que os “Anos Dourados” se repitam, dependendo da atitude de governos tanto de países ricos quanto dos pobres.

Flávio Azevedo Marques Saes e Alexandre Macchione Saes dedicam um capítulo de seu livro “História Econômica Geral” ao relato da prosperidade dos “Anos Dourados” do capitalismo, que não se restringiram aos EUA e a outras potências. Beneficiaram também países subdesenvolvidos, entre eles o Brasil, e as economias socialistas da época, particularmente a então União Soviética.

De 1950 a 1973, o crescimento médio da economia global foi de 4,9% ao ano. Alguns exemplos: 4% ao ano nos EUA, 5% na França, 6% na Alemanha e 9% no Japão. Desempenhos bem superiores aos de décadas anteriores, desde o fim do século XIX.

O Brasil teve nesse período um grande avanço na industrialização, na infraestrutura e na criação de estatais, como Petrobras e Vale. Brasília foi construída e instalou-se em São Paulo a indústria automobilística. A renda per capita brasileira cresceu 134% nesses “anos dourados”.

Os empréstimos a fundo perdido do Plano Marshall em três anos, de US$ 13 bilhões da época, foram o estopim da explosão econômica. Esse montante representava 20 vezes o PIB brasileiro de então. Os principais países beneficiados foram Reino Unido, França, Alemanha, Holanda e Itália, cujo PIB conjunto cresceu 25% no período. A produção industrial aumentou 64% e a agrícola, 24%.

Avanços também se deram com a criação de organismos internacionais, como ONU, FMI, Bird, OCDE, Otan, CEE. Apesar da Guerra Fria e dos conflitos da Coreia e do Vietnã, foi um momento de esforço global de entendimento e adoção de um capitalismo voltado ao bem-estar social no Ocidente.

Até a polarização geopolítica ajudou a dourar aqueles anos. Agia-se para bloquear a expansão do socialismo soviético, que ameaçava dominar toda a Europa. Com os recursos do Plano Marshall, imaginou-se inicialmente, como castigo de guerra, transformar a Alemanha Ocidental em um país pastoril, para que nunca mais tivesse indústria capaz de sustentar um conflito armado. Depois, porém, adotando-se a Doutrina Truman, fortaleceu-se toda a economia alemã para que se tornasse uma potência que poderia servir, como de fato serviu, de barreira ao expansionismo soviético.

A prosperidade extrapolou para várias áreas, com avanços tecnológicos e mudanças culturais e de comportamento. Houve a expansão das transmissões de televisão, surgiram os programas espaciais que levariam o homem à lua e depois integrariam o planeta pelas comunicações via satélite. O filme “Being the Ricardos” (Amazon), com Nicole Kidman e Javier Barden, mostra bem o clima geral de euforia, otimismo e esperança dos anos 1950.

Pode-se argumentar que o avanço desses anos gloriosos foi uma simples recuperação dos anos desastrosos anteriores, com duas guerras mundiais. A observação é só parcialmente correta, porque os avanços suplantaram com enorme folga o nível de antes do desastre. E esses avanços não vieram por inércia ou sorte. Além do Plano Marshall, por traz de tudo estava o caráter keynesiano da atuação do Estado em várias partes do mundo no pós-guerra. Os governos, com políticas fiscais expansionistas, mantiveram o nível de atividade para garantir pleno emprego e bem-estar à população. Planos de aposentadoria, serviços de saúde, educação gratuita, seguro-desemprego, crédito subsidiado a habitações, entre outros, foram benefícios criados ou aprimorados pelo setor público.

Como naquela época, o mundo tem a chance de sair da atual guerra sanitária para um renascimento: crescimento da economia, distribuição de renda, programas de redução de pobreza, inovações tecnológicas e ambientais, volta de turismo, atividades culturais (shows, cinema e teatro) e grandes eventos esportivos, como copas do mundo e olimpíadas.

O FMI prevê que a covid estará sob controle no mundo até o fim deste ano. Mas há vários riscos pelo caminho, além de um possível alongamento da pandemia. A Rússia pode invadir a Ucrânia e iniciar uma nova guerra, fria ou quente. A China pode tentar incorporar Taiwan e provocar uma intervenção dos EUA na região. O Irã pode violar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, com consequências incalculáveis. Ataques cibernéticos, talvez mais letais que as pandemias, podem “apagar” o mundo virtual. A inflação pode sair do controle e atropelar a economia mundial.

Um novo período de euforia depende muito da habilidade das lideranças dos países para empurrar a atividade econômica com financiamentos, política monetária adequada e gastos essenciais, sobretudo em transferência de renda, infraestrutura, educação, saúde, tecnologia e indústria de baixo carbono.

Gastos globais trilionários já foram feitos, principalmente nos EUA e na Europa. Há limites para isso, obviamente, para não se cair na tal da irresponsabilidade fiscal e na inflação. Com engenho e arte, será possível fazer prevalecer a política fiscal inteligente contra o fiscalismo terrorista e a austeridade radical. E desfrutar novas décadas de ouro que, por enquanto, são um sonho.

 

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