Folha de S. Paulo
Cuidado com as bolhas! Não se enganem:
pode-se ganhar uma guerra de memes, mas perder a eleição. A maratona mal
começou
A dita "terceira via" —nome tolo—
não conseguiu, até agora, ser bem-sucedida em desbancar Jair Bolsonaro do
segundo turno porque, em termos estruturais, repete parte de sua estratégia,
que consiste em tentar eliminar do jogo o PT e a base social que ele representa.
Se bem-sucedida, manteria o país em conflagração ideológica permanente. Lembram-se?
"É a política, estúpido!"
É difícil competir com o cara no lamaçal da
indignidade política. As aspirações políticas obscenas que ele vocaliza não
combinam com modos à mesa, também os da civilização que superou a guerra de
todos contra todos.
Para ser um deles, é preciso combater as vacinas; usar coturnos em visita a chefe de Estado; recitar divisa fascista em encontro entre iguais; tratar o arroto como um dos modos da liberdade de expressão e contar piada de bilau em churrascada. O reacionarismo rejeita o pudor, e "a cadela está sempre no cio". Essa minha caricatura hostil, não se enganem, esculpe em carrara o herói de milhões de pessoas.
Como apontam as pesquisas, postulantes à
tal "terceira via" não conseguiram, até agora, rivalizar com o
"Mito" porque não têm como suplantá-lo nem nos transes da ventura nem
nos dons do pensamento. Ainda que intentassem uma competição na brutalidade
—Sergio Moro ensaia—, é pouco provável que atraíssem a patuleia do
"capitão". E, adicionalmente, afastariam os que, sendo refratários à
esquerda, rejeitam o vale-tudo.
Inexiste bolsonarismo sem o antipetismo
fanático. Nas palavras do presidente e de seus seguidores, PT e petistas
deveriam ser banidos da política, talvez do Brasil. Caso reeleito, dará
continuidade à "guerra cultural" restauradora: contra as esquerdas
—ou tudo aquilo que eles cismarem que assim tem de ser chamado.
A palavra não define um conteúdo. E só uma
pecha para desqualificar desafetos. A exemplo de todo reacionário delirante, o
"Mito" tem uma "Idade do Ouro" na cachola — aquele passado,
que nunca existiu, em que tudo teria sido belo, bom e justo.
Ele dirige sua pregação a milhões que veem
o mundo caído em tentações em razão da ação deletéria de comunistas, ateus e
gays. Uma multidão o leva a sério. Vejam lá: o
restaurador se encontra com Putin e diz que ambos são parceiros na
defesa dos "valores da família" —senha para a homofobia— e na "crença
em Deus".
O ex-agente da KGB, que considera o fim da
União Soviética "a maior catástrofe geopolítica do Século 20", deve
ter pensado: "É ainda mais idiota do que parecia". Idiotia que tem
sua eficácia. Também na Rússia...
O amigo de Queiroz jamais afirmou que
queria "governar todos os brasileiros". Ele não quer. A demonização
do inimigo não é mera crispação retórica. O apocalipse da restauração é fachada
de um governo perverso com o mundo do trabalho, com os direitos sociais, com as
minorias, com a segurança pública, com o meio ambiente —com tudo o que lembre
futuro. E há os beneficiários econômicos dessas escolhas do delírio da reação.
Qual é a aposta impossível que os
postulantes à terceira via fizeram até aqui, abraçados a seu
"nem-nem"? Respondo com uma síntese. Bolsonaro quer todos, menos o PT
e associados; a terceira via quer todos, menos o PT e Bolsonaro —aumentando o campo
da exclusão—, e Lula quer todos, menos Bolsonaro, notando, no entanto, que
nunca hostiliza o eleitorado não ideológico do seu antípoda.
O acerto do ex-presidente não é apenas
político. É também matemático. E Ciro? Não difere no jogo do
"nem-nem", mas com viés à esquerda. Com quem isso a que chamam
"terceira via" está disposta a falar?
Encerro com o parágrafo da dúvida, que pede
para entrar no texto. A eventual composição de federações pode trazer
novidades. O presidente não está morto. O líder
petista tenta ampliar ao máximo as alianças porque sabe que o embate
não será fácil —e governar pode ser ainda mais difícil do que vencer. O
antibolsonarismo realmente militante também é uma bolha: o turista apalhaçado
da Rússia e da Hungria, do qual é fácil mangar, é visto como herói autêntico
pela outra bolha. Não se enganem: pode-se ganhar uma guerra de memes, mas
perder a eleição. A maratona mal começou.
Reinaldo Azevedo e a clareza atroz de seu raciocínio.
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