O Globo
No Brasil, a televisão promove milagres
periódicos. E o mais recente deles foi reintegrar ao circuito popular dos
afetos a figura de Nara Leão (1942-1989), cantora que, desde bem cedo, se
desvinculou da competição por vezes insana entre as grandes vozes e pôs-se a
serviço das grandes ideias. Nara não se conformou com o que a posição social e
o fato de ser mulher determinaram para ela. Rasgou a fantasia de musa da bossa
e foi cantar samba de morro e canções de alto realismo social em “Nara” (1964)
— LP que, defendem os estudiosos, inaugurou a MPB.
A esta altura, todo mundo já assistiu à série documental “O canto livre de Nara Leão” (Globoplay), do diretor Renato Terra. E não foram poucos os que verbalizaram, ao fim, o sentido saudosismo de um tempo no qual o Brasil podia reconhecer as suas angústias nas canções, e nelas buscar por soluções ou simplesmente por um alento. Um tempo bem anterior ao advento das redes sociais e dos reality shows, no qual eram os compositores e as vozes que conseguiam pautar os grandes debates nacionais, de um país em convulsão, no campo de batalha dos festivais da canção.
Em 2022 — mais um ano em que o Brasil
insiste em lembrar, como farsa, 1968, aquele das ameaças à democracia pós-1964
—, a pergunta que muitos se fazem é: onde está a música que exprime esse nó na
garganta cotidiano com a mesma combinação de firmeza, otimismo e poesia de Nara
Leão?
Permita que eu fale / Não as minhas
cicatrizes — esses são os versos centrais de “AmarElo”, sucesso de Emicida, o
maior nome do atual rap brasileiro. Estruturada em cima de “Sujeito de sorte”,
faixa de 1976 do cearense Belchior (Tenho sangrado demais / Tenho chorado pra
cachorro / Ano passado morri / Mas esse ano não morro), essa foi uma canção que
causou comoção poucas vezes vista na música popular. Ao unir as pontas da
inquietação de outros dias com as de um país em pleno desmonte democrático, de
2019, Emicida ousou falar de esperança e de futuro.
Emicida sabe: muitas são as cicatrizes que
cobrem a pele do rap desde que este foi sacramentado como movimento de massa
com o avassalador sucesso do LP “Sobrevivendo no inferno” (1997), dos Racionais
MCs. Rompimento com tudo que a MPB de Nara propunha, o disco inaugurou toda uma
era de narrativas da periferia: sem cordialidade ou chance de redenção,
pintadas com as tintas hiper-realistas do massacre do Carandiru e as falas de
pastores neopentecostais e de traficantes — lideranças em comunidades aonde o
poder público só chegava na forma de polícia.
Ainda hoje, a dureza, a secura e a
integridade de princípios dos Racionais (em especial na denúncia do racismo)
pautam as estrelas da música periférica brasileira. No entanto, a exemplo de Zé
Kéti ou de João do Vale, vozes do morro e do sertão que dividiram com Nara o
espetáculo “Opinião”, há sempre um tanto de poesia e de luz possíveis de serem
injetados na sólida rocha da realidade.
Hoje, o país ouve o MC Caveirinha cantando
“Favelado também pode” (Mãe, tô no corre / De te dar uma casa branca sem ter
que pegar no fuzil / Pretos com grana / Vão nos chamar de família Obama daqui
do Brasil) ou então Tássia Reis e Djonga em “Ostentação da cultura” (O objetivo
não é só encher a pança / É uma transa em um clima menos tenso / Mais lazer e
saúde pras criança / Minha ideologia hoje é o bom senso). Um dos discos mais
elogiados de 2021, “Baile”, de FBC e VHOOR, por sua vez, chama a atenção com
uma canção em que brilha a solidariedade, “Vem pro baile” (Ensina suas cria que
a polícia tá na rua pra matar ou pra prender / Ontem foi o nosso mano, amanhã
pode ser você / E a real da vida é fazer a vida ser melhor pra geral).
Finda a tempestade, o sol nascerá. Assim
espera este país, alertado do além por Nara Leão (e da Terra por um atento
exército de MCs de favela), de que mesmo entre tanta festa e sofrência, a MPB
ainda é grandiosa o suficiente para não abdicar da poética luta por justiça e
igualdade.
*Repórter e crítico musical do GLOBO
Li algumas resenhas de Silvio Essinger na ''Isto é Gente'',adoro seus textos.
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