quarta-feira, 23 de março de 2022

Armando Castelar Pinheiro*: Uma nova ordem econômica mundial?

Valor Econômico

A busca da eficiência perde peso na definição da política econômica, em prol de objetivos considerados estratégicos

Este começo de década não tem sido fácil. Primeiro, a pandemia da covid-19, que já ceifou seis milhões de vidas no mundo, sendo 655 mil no Brasil. Agora, essa terrível guerra na Ucrânia, que já custou alguns milhares de vidas, sendo pelo menos 600 civis, além de grande destruição e sofrimento humano.

É uma estranha coincidência que, há um século, a humanidade passou por um par de crises semelhantes, com a Gripe Espanhola e a I Grande Guerra. Essas crises deslancharam uma progressiva, mas grande mudança na maioria dos países, que levou a políticas econômicas bem menos liberais. O caso mais extremo foi o dos países comunistas, em especial dos que formaram a União Soviética, mas houve em toda parte mais intervenção do Estado na economia, seja via empresas estatais, seja via mais e mais intrusivas regulações.

Será que viveremos algo semelhante também neste século? Minha visão é que sim. Que já está em curso uma nova e significativa mudança na ordem econômica mundial, que ganhará contornos mais claros nos próximos anos. Penso que três forças principais têm empurrado essa mudança.

Uma é a utilização de instrumentos de política econômica como “armas” com fins geopolíticos. Isso vem de algum tempo, com a imposição de sanções econômicas diversas a países, e seus governantes, que desrespeitam políticas estabelecidas pelos governos das nações com maior poderio econômico e, em geral, militar, que são desenhadas de forma a pressionar governos e empresas de outros países a também a elas aderir. Um exemplo são as sanções econômicas impostas ao Irã.

Apesar de não ser novidade, essa política ganhou nova dimensão quando esses instrumentos passaram a ser usados pelo governo americano em sua disputa com a China. As sanções começaram pelo mais tradicional uso de barreiras às importações, mas depois se diversificaram, passando a abranger também a proibição de se vender para empresas chinesas produtos que se utilizem de uma série de tecnologias desenvolvidas nos EUA e a expulsão das bolsas americanas de empresas chinesas nelas listadas.

As sanções impostas à Rússia e a vários de seus cidadãos ampliaram bastante o leque e a intensidade dos instrumentos utilizados, a ponto de o presidente russo as ter equiparado a “uma declaração de guerra”. É um acontecimento cujas consequências econômicas só serão conhecidas com o tempo, mas tudo indica que essas serão no sentido de menor integração comercial e financeira global.

Isso reforça a segunda força provocando a mudança, que é a percepção de que a integração produtiva global promove a eficiência, mas por outro lado aumenta o risco. A pandemia acentuou essa percepção, ao complicar o funcionamento das cadeias globais de valor. As sanções impostas à Rússia acentuaram ainda mais essa percepção, ao reduzir a oferta de uma série de produtos no mercado global, como o petróleo, o gás natural, o trigo e o gás neon. Esses choques devem reduzir o peso da busca da eficiência econômica em prol de objetivos de autossuficiência, favorecendo a produção doméstica de diversos itens.

Essa é parte da dinâmica que sustenta a terceira força por trás da transformação da ordem econômica mundial: a inflação mais alta. A perda de eficiência das cadeias globais de valor, assim como a busca de fontes menos poluentes de energia, já respondem por parte da forte alta dos preços no último ano. Esta também é em grande parte causada pelos fortes estímulos fiscais e monetários dados em resposta à pandemia, que levaram a uma grande expansão da demanda mundial de bens, em um contexto de oferta limitada.

Ocorre que uma das respostas de vários países, em especial na Europa, à guerra da Ucrânia é o aumento do gasto público com armamentos. Isso se traduzirá em mais estímulo fiscal, em um quadro em que o desemprego já está bem baixo e a inflação bem alta.

Em tese, isso poderia ser compensado por políticas monetárias mais contracionistas, mas é pouco provável que isso ocorra. Basta ver que, apesar da inflação recorde, a postura dos bancos centrais das economias ricas é de endurecer a retórica, mas manter juros reais (bem) negativos.

Talvez por acreditarem, como argumentam alguns, que a inflação voltará sozinha à meta, mesmo com a política monetária expansionista. Talvez, quem sabe, pela torcida de que assim se evite um aumento das despesas com juros sobre a dívida pública, que deu um salto em muitos países no último par de anos. Nos EUA, por exemplo, a dívida pública federal fechou 2021 em 123% do PIB, mais que o dobro de 15 anos antes. Um ponto percentual de juros a mais significa 1,2% do PIB de despesa adicional. E isso sem considerar os governos estaduais e municipais.

No todo, parece um quadro em que a busca da eficiência perde peso na definição da política econômica, em prol de objetivos considerados estratégicos. Seria, assim, uma ordem de maior competição geopolítica e menos cooperação internacional, com mais tolerância com a inflação.

Claro, é apenas um cenário. Mas, nem por isso, uma possibilidade que devamos desconsiderar enquanto país.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre

 

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