sábado, 19 de março de 2022

Ascânio Seleme: Putin destruiu argumentos a seu favor

O Globo

foto de Lynsey Addario é dramática. No primeiro plano, dois soldados estão agachados, checando a vítima mais próxima deles, um homem estirado no chão com sangue no nariz. Logo depois, outras três pessoas mortas estão espalhadas na calçada, um adolescente, sua irmã de nove anos e a mãe de ambos. Ao fundo, um homem passa, com ar apressado, certamente com medo, sem olhar para a cena macabra. O menino tem sua mochila azul ainda presa nas costas. Diante do corpo da mãe, uma mala com o que ela conseguiu reunir para fugir. A foto foi para a primeira página do jornal “The New York Times” de terça-feira, assim como o relato de Addario sobre o massacre que testemunhou.

Todos sabiam que aqueles eram civis evacuando. Era muito visível, mesmo desde a posição onde estavam os soldados russos, disse a jornalista ao podcast “The Daily”, do NYT. Addario via pelas lentes de sua câmera que famílias tentavam fugir de Irpin para Kiev através de um resto de ponte que havia sobrevivido a um bombardeio feito pelos próprios ucranianos para impedir o avanço das tropas invasoras. O ataque contra aqueles civis foi deliberado. Um vídeo produzido pela equipe do jornal mostra as pessoas caminhando em fila e em seguida a explosão. Alguns escaparam, menos Tatiana, de 43 anos, e seus filhos Nikita, de 18, e Alissa, de 9. A quarta vítima era um voluntário que os ajudava a escapar.

No dia seguinte, dez pessoas foram mortas pela artilharia russa numa fila para comprar pão na cidade de Chernihiv. Todos civis. Mais tarde, um teatro que servia de refúgio para 500 mulheres e crianças foi bombardeado por aviões russos, apesar do aviso gigantesco escrito no chão, dos dois lados do edifício, de que ali havia crianças. Ao longo dos últimos dias, os alvos dos soldados de Vladimir Putin são prioritariamente civis. Inúmeros prédios residenciais estão sendo bombardeados e destruídos em Kiev, Mariupol, Kherson e outras cidades ucranianas. Impossível precisar o número de inocentes mortos. Segundo a ONU, 780 civis, sendo 64 crianças, morreram na guerra. Volodymyr Zelensky diz serem milhares e que só de crianças já foram mais de cem. Em Mariupol, há corpos abandonados nas ruas, e outros estão sendo enterrados em valas comuns.

O fato é que o massacre promovido por Putin na Ucrânia mudou o discurso de alguns analistas, comentaristas e pitaqueiros que tentavam explicar, ou até justificar, a invasão russa à Ucrânia. O primeiro argumento, que via uma guerra por posições militares, virou pó junto com as vítimas civis bombardeadas pelos russos. Os militares de Putin, aparentemente, não têm armas, nem tecnologia e competência para conduzir uma guerra cirúrgica, atacando apenas alvos militares. Suas ações são violentas e cruéis, com objetivos aleatórios. O que se vê diariamente na Ucrânia são crimes de guerra que um dia deverão ser julgados.

O segundo argumento tem cheiro de mofo, remonta à guerra fria. Trata-se da afirmação de que a Rússia estava ameaçada pelo fato de a Ucrânia se aproximar da União Europeia e pleitear um assento na Organização do Atlântico Norte. Bobagem. Participar da UE daria vantagens econômicas à Ucrânia. E por que não? Já com relação à Otan, alguém hoje em dia ainda imagina, sinceramente, que com a entrada da Ucrânia a organização militar poderia invadir a Rússia ou ameaçar de outra forma o país que tem 6 mil ogivas nucleares prontas para serem disparadas?

Este velho discurso também estava sendo usado pelos que se opõem politicamente aos Estados Unidos, ao capitalismo e a uma certa hegemonia ocidental. Nesse caso, o defensor dos valores anticapitalistas seria a Rússia? Ou a China? Francamente. Para satisfazer este raciocínio deveria ainda existir o comunismo. Mas este já desapareceu. Para quem acha que a China é comunista, basta dizer que quando o primeiro lockdown foi levantado em Guangdong, uma loja da Hermès num shopping da cidade faturou US$ 2,7 milhões em um único dia. No comunismo, ninguém teria dinheiro para fazer compras na loja de luxo francesa. Moscou, por sua vez, tem três concessionárias Rolls-Royce. Quantas dessas você conhece no Rio de Janeiro? Só uma, e ela conserta aparelho de ar condicionado no centro da cidade.

Vale o quanto pesa?

Cresce entre muitos analistas políticos a sensação de que Bolsonaro voltou a ser competitivo, depois de ter passado alguns meses como um cadáver insepulto. Eles têm bons argumentos para apontar nesta direção. Primeiro, o presidente cresceu entre dois e três pontos nas pesquisas das duas últimas semanas, enquanto Lula estacionou. Depois, começou a abrir o saco de bondades com bolsa emergencial, antecipação de 13º para aposentados e pensionistas, afrouxamento das regras para liberação de FGTS, facilitação de crédito consignado e, quem sabe, subsídio para combustíveis. Importa observar, contudo, que os crescimentos nas pesquisas foram todos na margem de erro. Depois, bondade só ganha eleição se for eficiente. Com desemprego e inflação recorde, se diluem. É bom também analisar o resultado eleitoral de 2018, quando Fernando Haddad obteve 44,87% dos votos, mesmo tendo sido lançado apenas um mês antes do primeiro turno. Àquela altura, seu partido esfregava o nariz no fundo do poço: Lula estava preso, Dilma amargava quase três anos de afastamento e PT era sinônimo de corrupção. Por outro lado, Bolsonaro, o mito, não catalisava tanta rejeição e ódio como agora.

Leite esparramado

É interessante a movimentação do governador do Rio Grande do Sul por uma vaga na disputa presidencial. Eduardo Leite não desiste. A percepção dos que o acompanham e assessoram é que quanto mais ele ficar em evidência, melhor para qualquer outro salto que queira dar caso sua candidatura não decole. Leite ocupa todos os dias espaço nos noticiários de TVs e rádios, as melhores páginas políticas dos jornais, os blogs mais acessados do colunismo nacional e tem amplo trânsito nos tuítes e nas postagens de jornalistas e formadores de opinião. Trata-se de um jogo em que ele só ganha, mesmo perdendo.

Tiro no pé

Não fosse a ministra Rosa Weber, o Senado daria um enorme tiro no pé ao estabelecer prazo de três meses para prestar contas do mal afamado orçamento secreto. Em três meses, ou julho, estaremos em plena campanha eleitoral. O efeito da revelação dos gastos que agora se quis negar ao contribuinte poderia causar grandes prejuízos eleitorais mais adiante justamente aos que hoje escondem os números.

Marielle

Há quatro anos não se descobre quem mandou matar Marielle Franco por incompetência ou má vontade da polícia, ou por interferência política nas investigações. Enquanto isso, vem aí mais uma onda sobre o assassinato do prefeito Celso Daniel, do PT de Santo André. Alguém tem dúvida de que outra vez vai-se acusar o PT e petistas pela morte do político? Daniel foi assassinado há 20 anos. Documentário da Globoplay, que ouviu todos os lados das investigações e todos os envolvidos, não deixa dúvida que foi um crime comum. Mas, grande coisa, para que existem as fake news, não é mesmo?

31 de março

Não haverá o que comemorar no dia 31 de março. Ao contrário, a data deveria ser consagrada como dia nacional de repulsa às ditaduras. Hoje, um grupo de pessoas vai às ruas festejar os 58 anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Já naquela época usava-se o nome de Deus em vão. A famosa marcha foi o primeiro passo para o golpe de 1964, dado por generais insurretos alguns dias depois. Sua lembrança também deveria ser repudiada.

Vacinação e ignorância

O que acontece com a terra de José Sarney? Enquanto São Paulo tem mais de 86% da população acima de cinco anos vacinada, no Maranhão são apenas 61%. Há outros estados com números abaixo dos 70%. Levantamento feito pela Lancet mostra que cidades que mais apoiaram Bolsonaro em 2018 têm taxa de mortalidade de Covid maior. Enquanto isso, há gente tomando agora a primeira dose da vacina apenas porque precisa da carteirinha de vacinação para arrumar emprego ou entrar em alguns estabelecimentos.

O feito Putin

A invasão bárbara de Vladimir Putin à Ucrânia conseguiu um feito inédito, unir os americanos que estavam divididos politicamente desde a derrota de Donald Trump. E pode, também, melhorar os índices do inimigo Joe Biden. Por outro lado, Putin está dividindo seu próprio país, perseguindo dissidentes, a quem chama de “escória de traidores”, prometendo purificar a Rússia, caçando e cuspindo “falsos patriotas”. Um exemplo de que a coisa vai mal na Rússia foi o discurso que fez ontem num estádio lotado de simpatizantes. Numa cerimônia plastificada e falsa, o déspota desfiou mais uma vez seu rosário de mentiras.

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