quarta-feira, 2 de março de 2022

Bruno Boghossian: Neutralidade pela metade

Folha de S. Paulo

Itamaraty condena russos na ONU enquanto presidente conta com boa vontade particular de Putin

Jair Bolsonaro fez uma incomum exibição de pragmatismo ao justificar a hesitação do governo brasileiro diante da invasão da Ucrânia. O presidente convocou uma entrevista no meio de sua folga de Carnaval para dizer que o país evitava condenar a guerra por temer retaliações russas no comércio internacional. "Para nós, a questão do fertilizante é sagrada", declarou.

Descontado o excesso de franqueza, a explicação poderia passar a imagem de que Bolsonaro se rendeu a uma diplomacia de resultados. O Brasil depende de fertilizantes importados, e a Rússia é a origem de quase 25% desse material. O presidente, porém, derrapou na ilusão de "neutralidade" com que tentava embasar sua posição.

Bolsonaro poderia proteger os interesses econômicos do Brasil sem endossar um dos lados e ofender o outro. Na entrevista de domingo (27), o presidente disse que não tinha nada a conversar com o colega Volodimir Zelenski e, de forma gratuita, fez pouco caso da carreira pretérita do líder ucraniano. "O povo confiou num comediante o destino de uma nação", ironizou.

Sem nenhuma cautela, Bolsonaro também encampou parte dos argumentos do Kremlin a favor da invasão. Afirmou que "grande parte da população da Ucrânia fala russo" e alegou que Vladimir Putin só estava "se empenhando" em regiões separatistas do Sul do país. Naquele dia, tropas da Rússia já se aproximavam da capital ucraniana.

A devoção aos fertilizantes produziu uma generosidade que contrasta com as birras do presidente com outros países. O bolsonarismo manteve uma política de insultos à China mesmo dependendo de seus insumos para fabricar vacinas. A parceria militar brasileira com a França também nunca impediu o governo de atacar Emmanuel Macron.

Bolsonaro quer dissociar suas atitudes do comportamento da chancelaria brasileira. Enquanto o Itamaraty condena os russos na ONU, o presidente parece contar com uma boa vontade particular de Putin.

 

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