segunda-feira, 7 de março de 2022

Bruno Carazza*: Guedes não quer guerra com ninguém

Valor Econômico

Paulo Guedes deixou claro que não tem mais coragem de enfrentar os piratas privados e as criaturas do pântano político em nome de um sistema tributário mais eficiente

Há uma guerra lá fora, e por aqui a vida transcorre normalmente. Com tantos problemas internos, nossas batalhas são outras, mas, em ano eleitoral, vivemos um período de cessar-fogo.

A sociedade brasileira é bombardeada diariamente pela desigualdade, miséria, fome e retrocessos na educação, na saúde e na segurança. Na economia, vivemos sob o fogo cerrado da baixa produtividade no setor privado, de ineficiências estatais e de um sistema tributário caótico.

Sem muita estratégia, mobilizamos recursos, gastamos muita munição, e continuamos levando chumbo de nossos maiores inimigos.

Nos anos eleitorais, contudo, a classe política combina uma trégua. Com medo de perder votos, presidente, deputados e senadores, ninguém quer fazer guerra contra ninguém. Toda medida que possa mexer nos interesses de grupos de interesses é devidamente deixada pra depois das eleições.

A decisão do governo de reduzir em 25% as alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), tomada na sexta-feira de Carnaval (25/02), ilustra bem essa tática de não querer comprar briga para corrigir as inúmeras distorções da economia brasileira.

O diagnóstico para nosso sistema tributário disfuncional é conhecido de todos: vários tributos, de administração muito complexa e com incidência bastante desigual entre os setores, que inibem e distorcem investimentos, além de ser socialmente regressivos (os mais pobres acabam pagando proporcionalmente mais em relação à sua renda).

Realizar uma ofensiva pela simplificação e melhoria da equidade de nosso modelo tributário trará inegáveis ganhos para o país, mas deixará mortos e feridos no caminho. Empresas ineficientes, e em alguns casos setores inteiros, só sobrevivem à concorrência graças a isenções, créditos presumidos e outros benefícios fiscais. Unificar tributos e alíquotas trará ganhos coletivos, mas perdas individuais - e um governo só será bem-sucedido em aprovar uma reforma tributária verdadeira se estiver disposto a enfrentar a resistência de quem lucra.

Paulo Guedes sempre repete que “piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram para saquear o povo brasileiro”. A frase é ótima, pois descreve com perfeição o ambiente reinante em Brasília há décadas. Pena que o ministro tenha feito tão pouco para enfrentar esses monstros de nossa vida política.

O ministro das frases de efeito e dos números mágicos encerra o mandato entregando arremedos das transformações megalomaníacas que prometeu. Para quem iria privatizar quase tudo, a capitalização da Eletrobrás, se vier, será um prêmio de consolação. Longe de conseguir zerar toda a dívida pública, “que consome um Plano Marshall por ano em juros”, o homem forte da economia já se vangloria por, talvez, zerar o déficit primário em 2022. Sem conseguir abrir o país ao exterior, comemora o corte de um décimo nas tarifas de importação.

A redução das alíquotas do IPI em um quarto é mais um exemplo da tática de Guedes de recorrer a atalhos para chegar na campanha eleitoral dizendo que entregou alguma coisa, já que desistiram da reforma tributária.

Em vez de batalhar no Congresso pela aprovação das PECs nº 45 ou 110/2019, que unificam IPI, Pis, Cofins, ICMS e ISS num único Imposto sobre Bens e Serviços, Guedes se limita a fazer, por decreto, um agrado aos empresários ligados à Fiesp e à CNI. É melhor do que nada, claro, mas longe de ser o necessário para iniciar o processo de “re-industrialização da economia brasileira”, como anunciou.

A opção por uma diminuição linear das alíquotas também demonstra que o então todo-poderoso ministro evitou encarar os interesses incrustrados na tabela do IPI. Existem hoje vigentes 30 níveis diferentes deste tributo, de 0% a 300%, com grande variância inclusive dentro de um mesmo setor (ver tabela abaixo). Aplicar um corte de 25%, como fez o governo, não altera a dispersão.

Se estivesse disposto a conferir um pouco mais de racionalidade à tributação dos bens industrializados no país, o governo poderia ter simplificado a estrutura reduzindo o número de alíquotas diferentes, eliminando discussões bizantinas. Um exemplo de dúvida que chegou até o STF: garrafão de água mineral é “embalagem de produtos alimentícios” (IPI de 0%) ou “garrafão, garrafa, frasco e artigos semelhantes” (IPI de 15%)?

A desejável simplificação da tabela do IPI em poucas faixas de tributação, contudo, faria com que alguns setores pagassem menos, e outros mais. Guedes não quis confusão com ninguém.

Se fosse um pouco mais ambicioso, o ministro poderia ainda condicionar a baixa no IPI para alguns setores, exigindo em troca menores tarifas de importação. Em vez disso, preferiu ceder aos pleitos do amigo do presidente para zerar o imposto sobre jet-skis e asas deltas.

Na tabela do IPI, cada alíquota esconde um lobby. Neste fim de mandato, Paulo Guedes já deixou claro que não tem mais coragem de enfrentar os piratas privados e as criaturas do pântano político em nome de um sistema tributário mais eficiente.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

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