terça-feira, 1 de março de 2022

Carlos Andreazza: Ustra nos costumes, Tarcísio na economia

O Globo

Bolsonaro palestrou para o mercado financeiro. Estava bravo. Tom em que apresentou o tripé por meio do qual pretende ser competitivo — e creio que será — em 2022: radicalizar contra o “establishment”, atacando sobretudo a credibilidade da urna eletrônica, para alimentar sua base de apoio sectária; radicalizar na sociedade com Ciro Nogueira/Arthur Lira/Valdemar Costa Neto, de modo a colher em votos a perversão do Orçamento em orçamento secreto para reeleição; e radicalizar na mobilização do sentimento antilulopetista, ora adormecido.

Palestrou para a mesma plateia que o ovacionara quatro anos atrás, então pré-candidato, enquanto desfilava sua agenda econômica: valorizar a banana do Vale do Ribeira, destinada a competir com a do Equador, e investir na transformação da Baía de Angra numa nova Cancún. Já havia Paulo Guedes, embora ausente do evento. Ausente, mas presença o suficiente — fiador o bastante — para que não houvesse dúvida, apesar das bananas e de suas cascas: Bolsonaro, “mito, mito!”, já era, meses antes do primeiro turno, o escolhido.

Quatro anos depois, falando para a mesma turma, e longe de ser rejeitado, cercado ali dos muitos robertos-jeffersons da Faria Lima, havia mudanças. Duas delas: tinha Guedes presente, sentado a seu lado; e estava irritado.

A irritação de Bolsonaro derivava da percepção de que o ente mercado chegara ao ano eleitoral precificando uma possível vitória de Lula como algo não tão terrível. A rapaziada tem memória... Ganhou dinheiro. Mas o conformismo da banca com uma eventual nova Presidência de Lula decorreria de constatação recente: o ex-presidente havia se tornado palatável porque Guedes fracassara.

Ou não terá fracassado o reformista que celebra como “marco do início da reindustrialização brasileira” um puxadinho — decreto reduzindo alíquotas do IPI —típico de Dilma Rousseff ? Ou não terá fracassado o liberal que, depois de jogar no Parlamento fatia modesta de reforma tributária, jogar e abandonar, contenta-se com uma gambiarra, arranjo circunstancial e insustentável, pensada para fins eleitoreiros, que se escora num aumento artificial de arrecadação, produto do imposto inflacionário?

Eis a reindustrialização de Guedes: deflagrada por decreto e com validade condicionada ao caixa artificialmente cheio pelo efeito da inflação que se quer baixar. Eis o desenho da bagunça: a arrecadação sobe como consequência da inflação descontrolada, sendo os efeitos desse descontrole a cobrir a renúncia fiscal.

Por que não Mantega?

O faniquito com que Bolsonaro cobrava o apoio dos banqueiros era — sem ser a intenção — uma manifestação contra o ministro da Economia. Era a admissão da falência do ministro. Fora o ministro — e só o ministro — quem tivera o apoio enfraquecido. Era com Guedes — somente para Guedes — a irritação de Bolsonaro, embora o presidente não soubesse nem o ministro recebesse. Todo mundo entendeu. Guedes, sentado ao lado de Bolsonaro, estava ausente o suficiente — encolhido o bastante — para nem sequer coletar o que lhe era destinado. Ninguém mais liga. E a galera até preferiria um Pedro Guimarães.

A palestra do presidente, porém, informava mais. Porque, mesmo que Guedes fosse competente, capaz de formular e executar políticas públicas, ainda assim haveria Bolsonaro no caminho, a casca de banana. Mas isso nem todo mundo quer entender.

Estava ali, aos berros, a explicação de por que este governo, com ou sem Guedes, é roda presa, organicamente avesso a reformas estruturais: porque Bolsonaro, antirreformista como Lula, é também o maior gerador de instabilidades já havido na República, centro irradiador de inseguranças, de imprevisibilidade, num solo, o dos negócios, que depende de estabilidade.

Bolsonaro é o risco fiscal. Leio, porém, que o risco fiscal estaria controlado. Controlado? Como? Está controlado Bolsonaro? Ou não terá feito, para gestores de bilhões de reais, nova pregação — suprassumo da instabilidade institucional — contra o sistema eleitoral, contra a Justiça Eleitoral, contra a Suprema Corte?

Bolsonaro faz — para usar palavra do momento — sanções diárias contra o Brasil. O PT não pode derrubar o teto de gastos porque o governo liberal já o botou no chão. E foi este o governo a constitucionalizar o aterro da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas que não sejam subestimados os daniéis-silveiras da Faria Lima. Nunca foi pelas privatizações.

Que não seja subestimado Bolsonaro. Gritava desde a cadeira de presidente. Tem a máquina do Estado. E, se de um lado seu sentava-se o fracasso, razão e destino dos berros, do outro alinhava-se Ciro Nogueira, chance de futuro, faca nos dentes, sócio no projeto de reeleição e dono do Orçamento da União deste país de “risco fiscal controlado”. Farão o diabo.

E é Ciro o formulador da talvez principal perna estratégica do tripé pela reeleição, de cujo exercício, na palestra, o presidente colheu as melhores reações da plateia, a quase lembrar a paixão de quatro anos antes: o investimento pesado no sentimento anti-Lula. Foi decisivo em 2018. Não há por que pensar que não será influente em 2022.

A rapaziada toparia Lula. Mas verga por Bolsonaro, Guedes à irrelevância. O novo lema vai empolgar: “Ustra nos costumes; Tarcísio na economia”. A paixão se agita. Pouco a ver com Estado mínimo.

 

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