sexta-feira, 4 de março de 2022

Cristian Klein: Kiev e o Planalto cercados de delírios

Valor Econômico

Esquerda e direita procuram nova ordem mundial

As primeiras reações à invasão na Ucrânia mostram a direita e a esquerda brasileira, em seus estratos mais empedernidos, ambos desnorteados, num discurso de difícil tração.

A guerra pôs o presidente Jair Bolsonaro em situação constrangedora, de ambiguidade, forçado a falar menos do que pensa. Embora esteja claro que sua simpatia viaje até o Kremlin. O Palácio do Planalto em Brasília está tão cercado de delírios olavistas quanto Kiev de tropas russas.

A esquerda também é assombrada pelos instintos mais primitivos, ainda que justificados com profundidade, digressões e contexto histórico. Desde a eclosão do conflito, há nove dias, vozes progressistas procuram relativizar a agressão de Vladimir Putin lembrando que o imperialismo ianque fez e faz igual em lugares como Iraque ou Afeganistão, com os quais a comunidade internacional parece pouco se importar. O único país a ter atacado outro com bomba atômica foram os Estados Unidos.

A Rússia, herdeira do império soviético, teria razões geopolíticas para proteger seu espaço dos avanços da Otan e do Ocidente, dono da ordem capitalista. Na caixa de ferramentas ideológicas, a chave da Guerra Fria saiu do fundo do armário para dar conta dos novos e graves acontecimentos.

Os principais atores, as duas grandes potências militares, parecem os mesmos rivais de ontem. Mas, de qualquer ângulo, a ação russa, o rastro de destruição, a tragédia humanitária, as ameaças de ataque nuclear são indefensáveis. Não é no autocrata e ex-oficial da KGB que a esquerda vai reviver sonhos de uma sociedade igualitária. Exceto como pastiche de crítica à ordem liberal.

Militantes do Partido da Causa Operária (PCO) - o equivalente do bolsonarismo na extrema esquerda - saem às ruas em manifestação pró-Rússia. Numa nota quase digna do mesmo PCO, a bancada do PT no Senado culpa os Estados Unidos e o expansionismo da Otan pela invasão na Ucrânia. Poucas horas depois, apaga a publicação nas redes sociais do partido, afirmando que o texto não passara pela aprovação dos parlamentares.

A moda pegou no PT quando a seara é política internacional. Em novembro, o partido já havia recuado e excluído de seu site oficial a nota em que saudava a reeleição de Daniel Ortega. Há 15 anos no poder, o ditador da Nicarágua metera seus opositores na cadeia para garantir a vitória.

Numa entrevista ao “El Pais”, o ex-presidente Lula comparou a longevidade do nicaraguense no cargo à da ex-chanceler alemã Angela Merkel, eleita e reeleita democraticamente. Emenda só não foi pior que soneto porque o petista, na mesma resposta, defendeu a alternância de poder e condenou a prisão de adversários de Ortega. Não sem antes se apresentar como vítima do que teria sido perseguição semelhante no Brasil, onde ficou preso por 580 dias e apeado da disputa presidencial em 2018.

Na primeira declaração sobre a invasão na Ucrânia, Lula evitou crítica direta a Putin e recorreu a generalidades: “Ninguém pode concordar com guerra, ataques militares de um país contra o outro”. Nas falas dos últimos dias, em visita ao México, passou a responsabilizar mais diretamente o presidente russo, embora com a ressalva de que as “potências” ocidentais também têm culpa. Lembrou que a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque se baseou numa mentira, uma vez que nunca ficou provado que o regime de Saddam Hussein detinha armas de destruição em massa.

Se, à esquerda, o antiamericanismo, o anticapitalismo e a busca por uma sociedade menos desigual nunca abraçaram o Tio Sam com capa de herói, pela direita o conflito na Ucrânia aponta para uma visão de mundo que não parou no século 20, ou pelo menos não é mais sustentada pelo alinhamento automático aos Estados Unidos ou a seus aliados no Ocidente.

Tudo depende de quem, individualmente ou partidariamente, governa e em que direção. Como se a geopolítica devesse ser movida não apenas pelos interesses do Estado-nação, mas pela ideologia, valores e agenda do líder de plantão. As hostes mais conservadoras e bolsonaristas também se voltaram contra os Estados Unidos, ou mais precisamente, contra o presidente Joe Biden.

Líderes como Biden, o francês Emmanuel Macron, o canadense Justin Trudeau são apontados como “fracos” e representantes de um progressismo que embute um pacifismo incapaz de defender a nação como homens valentes. Putin é admirado como suposto defensor da moral cristã, um nacionalista que desafia o globalismo liderado por grandes corporações e o detentor da coragem de um guerreiro. É afinidade que abre espaço para a misoginia em forma de memes que zombam das mulheres que ocupam destaque na cena internacional: de Kamala Harris, passando por Ursula von der Leyen até a predominância de ministras da Defesa em países centrais da União Europeia.

É o tipo de pensamento compartilhado por Bolsonaro, como registrado pelo colunista Lauro Jardim, de “O Globo”. O presidente, em meio à crise, fez circular num grupo de WhatsApp uma mensagem apócrifa, em tom olavista, segundo a qual “A Rússia não é a União Soviética; Vladimir Putin não é Stalin; USA não é mais uma nação virtuosa; e Só existe a Rússia, a China e a Liga Árabe capaz de enfrentar a NOM (Nova Ordem Mundial)”. Pelo texto, intitulado “A única verdade”, “o comunismo tem outro nome, se chama progressismo e seu berço é a Europa”.

É gente que duvida da ousadia de Putin caso o ocupante da Casa Branca ainda fosse Donald Trump, um “homem forte”, agressivo, de inclinação tão autoritária quanto o presidente russo. “Remédio para um doido é um doido e meio”, diriam. Tudo isso a despeito de Trump ter sido dócil e simpatizante dos métodos de Putin, até mesmo adulador, como Mussolini para Hitler. Logo após a invasão, o ex-presidente chamou o líder russo de “pacificador”, considerou sua ação na Ucrânia “genial” e sugeriu que os Estados Unidos poderiam fazer algo semelhante, invadindo o México.

Melhor não dar ideia a Bolsonaro, para o bem das relações entre Brasil e Uruguai.

 

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