domingo, 27 de março de 2022

Dorrit Harazim: Papéis invertidos

O Globo

Na primavera europeia de 1942, as tropas da Alemanha nazista já haviam atropelado a Ucrânia e a Bielorússia, então ainda pertencentes à esfera soviética, e avançavam cada vez mais URSS adentro. Para os generais do Alto-Comando de Josef Stálin, não parecia haver dúvida: a Wehrmacht de Adolf Hitler tentaria conquistar o maior troféu daquela frente continental — Moscou, capital do Império Soviético. Erraram feio. A meta dos alemães era sitiar, ocupar e destruir Stalingrado, centro industrial e polo armamentista do país, que ainda por cima portava o nome do inimigo comunista.

Seguiu-se um épico de ferocidade histórica. Cada cidadão russo da cidade recebeu um fuzil e a mesma ordem de número 227: “Nenhum passo atrás”. Quem se rendesse ao inimigo podia ser executado. Também o exército invasor foi inequívoco nos seus comunicados aos moradores de Stalingrado: civis do sexo masculino (440 mil habitantes à época) seriam fuzilados. As mulheres, deportadas para trabalhos forçados na Alemanha.

De início, a um custo de mais de 200 mil mortos (sim, 200 mil), os russos conseguiram rechaçar as primeiras investidas nazistas. Porém logo ficou claro o tamanho do desequilíbrio de forças. A saída encontrada pelo lendário marechal Georgy Jukov e seu colega Aleksandr Vasilevsky consistiu em transformar Stalingrado numa ratoeira. Ratoeira para os 300 mil soldados alemães e romenos que nela entrassem. Montaram um eficaz anel defensivo nas montanhas ao redor e foram fechando esse anel contra os invasores da cidade. Ao final de seis meses de combates, os russos tinham em mãos 100 mil exauridos prisioneiros de guerra. Os 70% restantes do 6º Exército hitleriano morreram de frio, fome ou em combate. Do lado vitorioso, o horror não foi menor — sobraram apenas 34 mil civis, dentre os 440 mil russos que viviam ali. São cultuados como heróis até hoje. A Batalha de Stalingrado mudou a maré da Segunda Guerra Mundial.

Passados quase 80 anos, assistimos ao desenrolar de um novo épico. Desta vez, o solo é ucraniano, e as tropas russas de Vladimir Putin desempenham o papel de invasor, não mais de defensor. No mais, o paralelo histórico e o denominador comum saltam aos olhos. Falta saber se o embate final nas ruas de Kiev se dará antes ou depois de um cessar-fogo, antes ou depois da destruição final do que resta de vida também em outras cidades fantasmas do país.

Manuais de guerra ensinam que travar batalhas urbanas tende a ser oneroso para a força militar invasora. Esse tipo de combate neutraliza boa parte das vantagens táticas que costumam favorecer o atacante. Sabidamente, tanques, blindados, mísseis e artilharia pesada de pouco servem em combates corpo a corpo, casa a casa, rua a rua. Para um exército defensivo, mesmo quando inferior em armamento ou soldadesca, a disposição de combater qualquer que seja o custo em vidas pode ser decisiva. Volodymyr Zelensky, pelo jeito, optou por essa estratégia para defender a sua Ucrânia. Do ponto de vista estritamente estratégico, argumenta o historiador Benjamin Carter Hett, do Graduate Center da City University de Nova York (Cuny), pode fazer sentido — mesmo que Putin bombardeie as cidades ucranianas até elas virarem ruína, as montanhas de destroços serão usadas de amparo para seus defensores.

Mas e do ponto de vista moral e humano, não há limite? Pelas contas mais recentes do Unicef, em apenas um mês de guerra, 4,3 milhões de crianças ucranianas estão refugiadas ou foram deslocadas — mais da metade da população infantil do país. O custo de uma infância roubada com tanta brutalidade é alto. Que tipo de sociedade brotará desse colapso civilizatório? Historiadores e aqueles que já vivenciaram guerras sabem que a desesperança maior vem no day after, não durante o sufoco. Enquanto há guerra, o ser humano foca no essencial — tentar sobreviver e esperançar pelo fim dos combates. Apenas quando a guerra acaba podemos nos dar ao luxo de perceber o horror passado e de ver do que fomos capazes. Só então começamos a julgar e a doer no mundo que sobrou.

Não será muito diferente no conflito atual, qualquer que seja o desfecho. É provável que o ucraniano Zelensky esteja seguindo ao pé da letra o ensinamento básico de Napoleão: nunca interrompa seu inimigo enquanto ele estiver cometendo um erro. E erros é o que não falta à estratégia militar de Vladimir Putin. Voltamos então a Stalingrado? Ou a algo pior? Misericórdia. 

 

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