terça-feira, 15 de março de 2022

Maria Clara R. M. do Prado: Entre o bélico e o planeta, dilema da EU

Valor Econômico

Guerra é ponto de inflexão de um modelo de governo do Estado Social para um padrão que prioriza as despesas militares

Dois anos depois de uma pandemia que continua a matar em algumas regiões do globo, a guerra na Ucrânia veio afundar as expectativas de crescimento econômico e de prosperidade mundial neste fatídico 2022, mas isso está longe de ser tudo.

Independente de quem seja o vencedor do conflito detonado por Putin, a guerra já tomou proporções suficientes para ser o ponto de inflexão de um modelo de governo fundado no Social State (Estado Social) para um padrão que priorize as despesas militares nos orçamentos públicos. Pior ainda, o novo paradigma comprometeria os projetos destinados a substituir as fontes poluentes pela produção de energia limpa, especialmente na Europa.

A iniciativa do governo alemão de dobrar os gastos com defesa este ano e de destinar mais de 2% do seu PIB àquela rubrica (hoje equivale a 1,53% do PIB) até 2024 é emblemática. Também a cúpula da União Europeia (UE) já anunciou que vai ampliar o orçamento destinado à defesa do bloco.

A dura realidade tem estimulado o debate sobre a conveniência de se criar uma unidade europeia de defesa que, paralelamente à Otan, possa caminhar pelas próprias pernas sem a tutela dos Estados Unidos. Alguns chegam a propor a formação conjunta de pessoal militar na região.

Não se deve desprezar a perspectiva de uma nova configuração geopolítica a partir da guerra na Ucrânia, com uma Europa militarmente mais forte e independente, uma Rússia economicamente mais próxima da China, uma China cada vez mais presente na Ásia e no Sudeste Asiático, uma aliança reforçada entre os Estados Unidos e o Reino Unido e destes com a Austrália. À margem seguiriam os países africanos e a América Latina, com o Oriente Médio a constituir aquele reduto cuja suma importância está ainda irremediavelmente ligada à necessidade atávica do mundo por petróleo.

E aqui surge uma outra consequência da guerra na Ucrânia: a percepção da urgência dos investimentos em fontes renováveis de energia. Não pela preocupação com a mudança climática, pois esta, muito embora reconhecida como um grande problema a ser enfrentado, tem até aqui sido tratada com a morosidade das retóricas que se sobrepõem às ações. Foi preciso uma guerra nas fuças para que a UE se desse conta de quão alto é o risco político da dependência do fornecimento de gás e petróleo.

Os chamados combustíveis fósseis ainda são fontes energéticas relativamente abundantes do ponto de vista econômico, mas essa abundância é relativa porque as grandes reservas, como se sabe, concentram-se na mão de poucos. Venezuela, Arábia Saudita, Canadá, Irã, Iraque, Rússia, Kuwait e Emirados Árabes Unidos, pela ordem, respondem por cerca de 80% das reservas de petróleo.

A perspectiva de problemas com o fornecimento de gás russo e as sérias consequências disso para a economia de boa parte dos países da região colocam a UE no corner, pois apesar das reiteradas promessas de incentivos aos investimentos em fontes renováveis de energia o bloco depara-se com o “dilema de Sofia”.

Diante da contemporaneidade da guerra, a questão é saber, afinal, qual será a prioridade. Tendo em vista que os orçamentos não são elásticos, o pêndulo das opções será empurrado para os investimentos militares ou para as inversões em energia renovável?

O trade-off está longe de ser trivial uma vez que ambas as alternativas implicam volumes expressivos de recursos públicos. No que diz respeito aos investimentos para zerar a produção de gases de efeito estufa em 2050, a Agência Internacional de Energia (IEA) aponta em seu relatório “Net Zero by 2050”, na versão de outubro de 2021, para a necessidade da alocação global “o mais rapidamente possível” de pelo menos US$ 90 bilhões de verba pública de modo a que os projetos demonstrativos estejam concluídos antes de 2030.

Aquele valor diz respeito basicamente à despesa com pesquisa e desenvolvimento em diferentes tipos de tecnologia para garantir o uso corriqueiro e de forma geral das fontes de energia limpa daqui a trinta anos.

Para se ter uma ideia do que representa em termos de grandeza, basta saber que apenas US$ 25 bilhões haviam sido comprometidos até 2030 para aquele fim nos orçamentos dos países até o ano passado, segundo a IEA.

Já com relação aos investimentos em defesa, os valores também são grandiosos. Os limites de gastos indicados pela Otan em 2014 - de 2% do PIB para cada país membro - previam que as inversões em pessoal e equipamento militar dos países do grupo aumentassem em 85% até 2025, mas estão bem aquém do recomendado. Apenas sete países haviam ultrapassado a marca dos 2% do PIB no levantamento preliminar realizado em 2021, com Grécia, Estados Unidos, Croácia e Reino Unido à frente, e não mais do que três estavam em linha com a meta.

A grande maioria ficou abaixo das recomendações da Otan, com Bélgica, Espanha e Luxemburgo na rabeira. Mas o quadro está em rápido processo de mudança. Assim como a Alemanha, a Dinamarca (1,41% do PIB) anunciou que vai aumentar o gasto militar para o equivalente de 2% do PIB até 2033. Países fora da Otan, como a Suécia (1,3% do PIB com gastos militares), também se preparam para alocar montantes expressivos em defesa.

Como se vê, o dilema diante da Europa é substancial. Significa escolher entre sacrificar por mais tempo o combate à emissão de gases de efeito estufa, continuando assim na dependência do fornecimento de gás e de petróleo, e ampliar sua capacidade de defesa militar. Grosso modo, é como ter de optar entre salvar o planeta dos riscos climáticos ou salvar a própria pele, população e território, das ameaças bélicas.

 

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