sábado, 12 de março de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Não se equilibra o mercado de petróleo no improviso

O Globo

A guerra da Ucrânia afeta o preço do petróleo e a inflação no mundo todo, mas cada país reage a seu modo. A Europa debate como reduzir a dependência da energia russa. Estados Unidos e outros países liberam seus estoques estratégicos, mas ao mesmo tempo discutem até que ponto é razoável ampliar subsídios e isenções de impostos a combustíveis fósseis — de quase US$ 1 milhão por minuto no planeta. No Brasil, a questão é outra.

Pelas postagens de políticos nas redes sociais, parece que vivemos num planeta à parte, e nosso problema se resume à política de preços da Petrobras. Depois de semanas segurando aumentos, a estatal enfim reajustou os preços nesta semana, mesmo assim aquém do patamar do mercado internacional.

Não importa. Do governista Arthur Lira ao oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva, passando pelo presidente Jair Bolsonaro, todos os matizes do espectro ideológico parecem encarar a empresa como responsável pelos aumentos, apenas porque ela pratica os preços de mercado. É como se o histórico desastrado de intervenções e desabastecimento nada tivesse ensinado ao país.

Só por evitarem demagogias à custa do caixa e do acionista da Petrobras, os ministros Paulo Guedes, da Economia, e Bento Albuquerque, de Minas e Energia, são dignos de reconhecimento. A aprovação emergencial no Congresso de dois projetos de lei que, segundo o governo, permitirão reduzir o preço nas bombas e aliviar o impacto da alta do petróleo na inflação (ontem o IPCA bateu novo recorde) é uma resposta que revela algum grau de amadurecimento diante do problema.

Há uma constatação óbvia, frequentemente esquecida, quando se fala no assunto: no Brasil, por mais que também haja subsídios e isenções a combustíveis fósseis, o governo na verdade é o principal sócio da alta da gasolina, do diesel e do gás via maior arrecadação de impostos. Nada mais razoável, portanto, que sacrificar parte desses impostos em benefício do consumidor.

O primeiro projeto faz isso mudando as regras do ICMS, principal tributo que afeta o preço nas bombas. O segundo usa um artifício engenhoso — um fundo de estabilização com recursos de dividendos da Petrobras, royalties, participações especiais e bônus arrecadados em leilões — para compensar as distribuidoras e segurar os preços. Em especial, destina vales diretamente àqueles cujo trabalho depende do uso dos combustíveis, como taxistas, motoboys ou motoristas de aplicativos.

Mesmo que os projetos caminhem na direção certa para mitigar o efeito da alta do petróleo na inflação, também precisam ser vistos com reservas. Primeiro, porque qualquer mudança em impostos tem impacto fiscal. Os principais afetados pelas regras do ICMS — governos estaduais cuja arrecadação tem aliviado as contas públicas — já prometem levar o tema aos tribunais. É incerto o impacto fiscal no futuro.

A segunda ressalva está nas regras do fundo de estabilização, que não estão claras. O mundo dispõe de exemplos bem-sucedidos de como esse mecanismo pode compensar a flutuação na cotação de recursos naturais, caso dos fundos do cobre no Chile e do petróleo na Noruega. Mas nenhum deles saiu no improviso. Quando o pré-sal foi descoberto, o Brasil teve a oportunidade de elaborar um fundo consistente que hoje poderia aliviar o impacto do choque do petróleo. Em vez disso, o governo preferiu mexer nos preços da Petrobras. E continuamos atrás do prejuízo.

Empossado como presidente no Chile, Boric sofrerá um choque de realidade

O Globo

A posse ontem do esquerdista Gabriel Boric como presidente do Chile marcou o início de um novo capítulo na História do país. Desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, há três décadas, é a primeira vez que um político não pertencente aos partidos tradicionais chega ao Palácio de La Moneda. O desenrolar de seu governo será acompanhado por chilenos e observadores de toda a região. O desafio é gigantesco. Durante a campanha, ele prometeu mudanças radicais na economia e na área social, enquanto seu opositor José Antonio Kast, de extrema direita, falava em ordem. Se quiser fazer um governo de união nacional, Boric terá de promover transformações sem esquecer de manter a ordem.

Ele dispõe de um capital político sintonizado com seu tempo. Ex-líder estudantil de apenas 36 anos, parece incorporar os anseios de um Chile jovem, preocupado com a desigualdade social, sensível à pauta feminista e em busca do desenvolvimento ambientalmente sustentável. A escolha de seu ministério, em que as mulheres são maioria, é prova disso. Aparentemente, Boric está aberto ao diálogo e entende que seu sucesso dependerá da capacidade de ouvir quem também é crítico a suas ideias. Ficou em segundo lugar no primeiro turno. Acabou vencendo na reta final com o apoio de uma parcela não desprezível de eleitores mais anti-Kast do que pró-Boric.

No Congresso, o novo governo enfrentará dificuldades. Não há apoio automático da maioria para nenhuma das suas principais propostas. Pelo menos no começo, a gestão de políticas públicas será penosa. A Aprovo Dignidade, coalizão formada por Frente Ampla, Partido Comunista e outros partidos que o elegeram, não tem quadros preparados para ocupar todas as posições. Como boa parte dos eleitores não se preocupa com ideologia, mas com melhoria de serviços públicos, essa deficiência torna-se preocupante.

Acima de tudo, o novo presidente terá de gerenciar expectativas. As coalizões que dominaram a política chilena — Concertação, de centro-esquerda, e Aliança pelo Chile, de centro-direita — não chegaram ao segundo turno nas eleições do ano passado, reflexo da profunda crise de representatividade da classe política. Essa insatisfação já se tornara explícita com os protestos de rua a partir de 2019. Boric simboliza a esperança de um novo início. Sua meta é reformar o país para elevar o bem-estar e combater a desigualdade. Só atingirá seus objetivos se atrair investimentos para manter o crescimento econômico.

Foi um bom começo a escolha de Mario Marcel, que ocupou a presidência do banco central por cinco anos, para a pasta da Fazenda. Mas temores entre empresários e investidores persistem. A Assembleia Constituinte, dominada pela esquerda radical e independentes, discute, entre outras maluquices, a nacionalização do setor de mineração. O caminho à frente de Boric não será fácil. O Brasil e o resto da América Latina deveriam acompanhá-lo com atenção.

Choque na bomba

Folha de S. Paulo

Encarecimento dos combustíveis não pode ser enfrentado com controle de preços

Os novos e expressivos reajustes de preços da Petrobras, que compensam apenas parte da defasagem ante as cotações internacionais, deram impulso a medidas compensatórias que já estavam em debate no Congresso e no Executivo.

Os aumentos de 25% para o óleo diesel, 16% para a gasolina e 9% para o GLP são corretos e necessários para preservar a política da empresa e evitar artificialismos populistas —muito mais custosos para a economia a longo prazo.

Como o mundo político já deveria ter aprendido com os muitos erros do passado, o represamento de tarifas públicas pode até agradar de imediato ao eleitorado, mas com o tempo provoca desequilíbrios crescentes nas finanças públicas e nos mercados. A conta é cobrada depois, com juros e correção.

Neste momento, petróleo e derivados encarecem no mundo em razão da guerra na Ucrânia e das sanções impostas pelos EUA à Rússia. Os preços sinalizam que é preciso consumir menos. Controlá-los significaria um benefício indiscriminado aos consumidores à custa dos cofres da Petrobras.

É inegável, de todo modo, que os reajustes provocarão danos sociais e econômicos, concentrados, como de costume, na população mais pobre. Haverá aumento da inflação, que precisará ser combatido com juros do Banco Central. Mais juros levam a menos crédito, investimento e emprego.

O risco em tal cenário, sobretudo em ano eleitoral, é que se adotem medidas apressadas e enganosamente fáceis para enfrentar o problema —como a imposição de preços artificialmente baixos.

Podem-se considerar, porém, medidas de caráter temporário que tirem partido dos ganhos extraordinários de arrecadação produzidos pela alta dos combustíveis.

No Congresso, avançaram dois projetos. O primeiro, que segue para sanção presidencial, abre espaço para redução de tributos sobre os combustíveis, com renúncia fiscal estimada em R$ 19 bilhões para a União e R$ 16 bilhões para os governos estaduais.

O outro texto, aprovado pelo Senado, traz dispositivos temerários, como a possibilidade de interferência na Petrobras e a criação de um fundo de estabilização de preços com recursos públicos.

Além dessas iniciativas, está em debate algum benefício social temporário, provavelmente custeado por dividendos pagos pela Petrobras ao Tesouro e por parte dos royalties do pré-sal. Em tal hipótese, seria crucial assegurar que o subsídio tenha prazo limitado à duração das excepcionalidades da guerra e foco na população carente.

O que não se pode permitir é que a crise sirva de pretexto para uma nova rodada de gastos públicos e benesses indiscriminadas, a prolongar o longo ciclo de quase estagnação da economia brasileira.

Selvageria esportiva

Folha de S. Paulo

Acumulam-se casos graves de violência de torcedores, estimulados pela impunidade

Episódios de violência envolvendo torcedores de futebol, dentro ou fora das arenas esportivas, são uma antiga e deplorável rotina no Brasil. Brigas organizadas pela internet, confrontos no transporte público e agressões variadas se sucedem, não raro provocando mortes.

Foi o que aconteceu em Belo Horizonte no último dia 6, um domingo em que as duas principais agremiações mineiras disputaram uma partida pelo campeonato estadual.

Horas antes do jogo, cerca de 50 pessoas, segundo a Polícia Militar, promoveram um espetáculo de selvageria no bairro Boa Vista, na região leste da capital. Resultado da barbárie, um homem morreu após ser alvejado por um disparo de arma de fogo. Tinha 25 anos e era pai de um menino de 5.

Não foi o único enfrentamento deste ano, que vai acumulando uma série preocupante de casos em diferentes localidades. Desde 12 de fevereiro, quando um torcedor do Palmeiras morreu nas imediações do Allianz Parque, em São Paulo, após a derrota de seu time na final do Mundial de Clubes, contam-se pelo menos outros nove episódios.

Entre eles, ganhou justificado destaque um ataque a bomba ao ônibus que conduzia jogadores do Bahia para uma partida no estádio Fonte Nova, em Salvador.

Diante de tal realidade, cabe perguntar por que dirigentes da área esportiva e autoridades da segurança pública não tomam as medidas necessárias para encerrar ou pelo menos conter esses torneios de estupidez agressiva.

Especialistas ouvidos por esta Folha, como o ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva, consideram que o problema está diretamente ligado à sensação de impunidade. É preciso penalizar os infratores.

O mais exasperante é que depois de experiências bem-sucedidas na Europa, em especial no Reino Unido, o Brasil conseguiu avançar na aprovação de leis voltadas para a violência no esporte.

Lamentavelmente, o Estatuto do Torcedor, que prevê punições severas, não é aplicado. Essa é a diferença entre o que acontece no Brasil e em países europeus.

Não é aceitável que esse estado de coisas perdure. Nada justifica que os responsáveis pela organização do futebol e pelas instituições públicas abordem o assunto de modo negligente, como se esse tipo de truculência fosse parte de uma realidade imutável.

Combustível para a demagogia

O Estado de S. Paulo

A alta dos combustíveis dá pretexto para que populistas ignorem o histórico desastroso da intervenção em preços e se apresentem como defensores dos consumidores

O agravamento da crise dos combustíveis no Brasil por causa da guerra da Ucrânia tem servido de pretexto para que populistas exerçam sua especialidade, que é criar soluções simples, e erradas, para problemas complexos. Contra a alta da gasolina, do gás de cozinha e do diesel, políticos de diferentes credos ideológicos apresentam-se como voluntariosos salvadores do povo, propondo e aprovando medidas que, além de pouco eficazes ou completamente inúteis, podem se provar desastrosas.

O presidente Jair Bolsonaro, o mais destacado desses demagogos, tem insistido obsessivamente em impor alguma forma de controle desses preços, muito antes que o primeiro soldado russo pusesse os pés na Ucrânia. A guerra é, portanto, apenas o pretexto mais recente para que – a título de conter a inflação, que costuma tirar votos – se articule alguma forma de controle de preços, tiro que quase sempre sai pela culatra.

Não é à toa que Bolsonaro tem como associados dessa articulação os demonizados petistas – que, quando estiveram no poder, seguraram o preço dos combustíveis para conter a inflação e reduzir os danos eleitorais, causando estragos na Petrobras, em particular, e na economia, em geral.

Não faltou nem a fingida indignação que tão bem caracteriza o populismo. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi às redes sociais para declarar que o reajuste dos preços dos combustíveis anunciado pela Petrobras “foi um tapa na cara de um país que luta para voltar a crescer”. Ora, há tempos o referido “país que luta para crescer” vem sendo estapeado pelo grupo político que está no poder, que sistematicamente atropela a responsabilidade fiscal.

A questão dos combustíveis é séria. Correções de 18% a 25% de uma só vez impõem ônus imediatos e severos sobre donos de automóveis e caminhoneiros e sobre o orçamento das empresas de transportes.

Há efeitos não tão imediatos, mas de extensão maior. Aumento nos transportes resulta em outras correções de preços, da matéria-prima da indústria ao feijão trazido do campo até a mesa do consumidor. Assim, afeta também os orçamentos dos que não são consumidores diretos de combustíveis, mas precisam consumir para se manter. Estes são, em geral, os consumidores de renda menor e mais vulneráveis às altas de preços. Ademais, variações tão expressivas nos combustíveis afetam a programação orçamentária das empresas e podem prejudicar decisões essenciais. Será inevitável que o aumento dos combustíveis impulsione a inflação, que já alcança 10,54% no acumulado de 12 meses.

Logo, o problema é realmente sério em muitos sentidos e precisa ser enfrentado, mas jamais com as comprovadamente ineficazes e danosas tentativas de controle de preços nem com renúncia fiscal num cenário já desafiador para as contas públicas.

A alta dos combustíveis agora anunciada, das mais expressivas em muitos anos, é apenas parcialmente justificada pela guerra da Ucrânia, pois os preços estavam parados havia quase dois meses, desde bem antes, portanto, do início do conflito. Não estão claras as razões para represamento de preços por período tão longo, e não se pode condenar quem veja nisso o resultado das pressões do presidente Bolsonaro sobre a Petrobras.

Medidas como as aprovadas ou em tramitação no Congresso, como a mudança da regra de cobrança do ICMS sobre combustíveis, a criação de um fundo de amortecimento das oscilações de preços ou ainda a instituição de uma espécie de auxílio-gasolina, terão impacto pouco significativo sobre o preço final dos combustíveis, mas poderão gerar desastres fiscais e sofrer contestação judicial. São bilhões de reais que não chegarão aos cofres públicos ou que deles serão retirados como subsídio, sem que haja compensação suficiente do lado das despesas. O problema não será apenas do Tesouro Nacional. Estados e municípios serão também prejudicados.

Controlar preços sempre foi a tentação dos populistas. Isso nunca funcionou. Mas a turma em Brasília, sobretudo em ano eleitoral, não costuma se preocupar muito com as consequências do que faz.

Visão privada, miopia pública

O Estado de S. Paulo.

Na questão da mobilidade, companhias privadas e lideranças empresariais têm olhos voltados para o futuro, mas a ação pública mantém vícios do passado

Há um notório descompasso entre o papel cada vez menos relevante da indústria de transformação na economia brasileira e a evolução da mentalidade de parte de empresários e executivos do setor. Há dirigentes industriais, inclusive em associações empresariais, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), preocupados com as transformações por que passa o mundo, exigindo soluções que, ao mesmo tempo, assegurem o progresso dos negócios e sejam, sobretudo, condizentes com as novas exigências ambientais e sociais.

A ampliação desse descompasso, como vêm comprovando as estatísticas da produção industrial, que definha há muitos anos, e a modernidade de número crescente de gestores do setor privado, porém, parecem sugerir que o Brasil está perdendo a corrida para reconquistar alguma relevância no mercado mundial de bens industriais, no qual só tem peso em segmentos muito restritos. A aparência pode, felizmente, ser falsa.

Visões pertinentes sobre as necessidades presentes e, especialmente, futuras, disposição de atender às novas e mutantes demandas e preocupação com inovação e tecnologia fundamentam programas de investimentos de empresas do segmento de transportes. São essas as marcas que perpassam os planos de dirigentes ouvidos pelo Estadão para o caderno especial Estadão Mobilidade Insights, que circulou com a edição de 9 de março. Lá estão caminhos para a sustentação e o crescimento da produção, em ambiente com muitos e novos desafios, mas que podem e estão sendo trilhados. É assim caminhando que a indústria pode recuperar seu papel transformador na estrutura produtiva do País.

A ambientalmente inevitável transformação dos padrões de consumo de energia, com o objetivo vital de reduzir a emissão de carbono, está no centro das preocupações de empresários e executivos ouvidos pelo jornal. Eletrificação, por exemplo, é uma meta praticamente universal. Há quem vá adiante, ao dizer que a eletrificação é um caminho, mas não o único, para algo mais abrangente, que é a descarbonização, a redução dos lançamentos de gás carbônico na atmosfera para conter o efeito estufa. Isso implica outras mudanças no padrão energético mundial, para a substituição, no menor prazo possível, da utilização de combustíveis fósseis, por exemplo. Biogás e gás natural somam-se à eletricidade para acelerar e estimular as transformações.

Há avanços nessa direção. A filial brasileira da sueca Volvo, por exemplo, é a segunda unidade desse grupo industrial em todo o mundo a ter toda sua linha de produtos eletrificada. Estudos da associação representativa do setor, a Anfavea, mostram que carros elétricos poderão ser produzidos localmente, fortalecendo a estrutura industrial do País.

Aos desafios de prazo mais longo, somam-se outros típicos do mercado brasileiro – como a idade excessiva da frota, que agrava sua ineficiência, e a incapacidade do produto brasileiro de alcançar mercados mais exigentes – e os trazidos por eventos recentes de alcance planetário. A pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia afetaram vários segmentos da economia mundial e a extensão e a duração de seu impacto global ainda não podem ser aferidas com precisão.

Devem ser acrescentados a esses outros problemas que prejudicam a mobilidade de mercadorias e pessoas. São dificuldades estruturais que o Brasil enfrenta há muitas décadas e que vêm sendo mitigadas, quando o são, com muita lentidão. A persistente precariedade da malha rodoviária num país em que o modal rodoviário responde por mais de 60% de toda a carga movimentada é uma das mais óbvias. A ineficiência das operações portuárias é outra. O desprezo histórico por modais economicamente mais adequados, como as ferrovias e as hidrovias, piora o quadro. Tudo isso depende de ação pública, não de investimentos diretos, mas de programas e regras adequadas que abram espaço para a gestão privada desses setores. Também aqui há descompasso, entre objetivos reais e concretos da iniciativa privada e a lentidão das ações do poder público.

Propaganda ilegal e imoral

O Estado de S. Paulo.

Bolsonaro não inventou o uso do Estado para fins pessoais, mas inventou ser o estadista que acabaria com a desfaçatez

O presidente Jair Bolsonaro nunca escondeu que vê os assuntos de Estado, de governo e os seus interesses particulares como uma coisa só. Em sua visão deturpada da democracia e do exercício do poder, Bolsonaro se sente legitimado a pensar e agir dessa forma pelos mais de 57 milhões de votos que recebeu em 2018. Neste ano eleitoral, a mixórdia chega ao paroxismo.

O presidente da República mobilizou a Advocacia-geral da União (AGU) para recorrer de uma decisão judicial que simplesmente o obrigou a respeitar a Constituição, como ele jurou fazer ao tomar posse. Por determinação da 3.ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal (DF), o governo foi proibido de promover autoridades federais associando seu nome e sua imagem a políticas e obras públicas, em campanhas que deveriam servir como informação à sociedade.

A Constituição dispõe que “a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos” (art. 37, § 1o). Qualquer brasileiro alfabetizado é capaz de compreender essa vedação.

O governo, no entanto, alega que a decisão da Justiça Federal do DF “limita” a divulgação de políticas públicas e ações federais. O Palácio do Planalto fala em “ativismo judicial”. Estranho “ativismo” esse que obriga o governo a tão somente cumprir um dispositivo constitucional redigido em português cristalino.

Para os beneficiários de uma ação governamental, não faz qualquer diferença se na peça de divulgação consta o nome ou a imagem de determinada autoridade. É evidente que o interesse primordial de Bolsonaro, alguns de seus ministros e outras autoridades que têm pretensões eleitorais em 2022 é fazer propaganda pessoal à custa do aparato do Estado. E isso é inadmissível.

A ação foi proposta em março do ano passado pelo Ministério Público Federal do DF com base em “diversas publicações em contas oficiais do governo em redes sociais, que traziam, como conteúdo principal, informações e imagens que fomentavam a imagem pessoal do presidente da República” ou de ministros. Em uma delas, divulgada pela Secom no mesmo dia em que a juíza Kátia Balbino de Carvalho Ferreira proferiu sua decisão, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, aparece em vídeo de três minutos dizendo que “a água chegou ao sertão nordestino” e que isso só foi possível porque “nós temos hoje na Presidência da República alguém que serve ao povo brasileiro, e não se serve dele”. Com trilha sonora dramática tocando ao fundo, Bolsonaro passa a criticar “o partido de esquerda”.

Bolsonaro não inventou a apropriação do Estado para fins pessoais. Lula da Silva, o chefão do “partido de esquerda” a que ele aludiu no vídeo, foi useiro e vezeiro da prática. Mas foi Bolsonaro quem vendeu aos incautos ser a encarnação do estadista que poria fim à desfaçatez. Foi só mais uma de suas mentiras.

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