sexta-feira, 4 de março de 2022

Reinaldo Azevedo: O criminoso Putin desvela a verdade nua

Folha de S. Paulo

Quantos males pode haver na Pandora aberta de Kosovo?

Vladimir Putin violou a Carta das Nações Unidas e o direito internacional. Qualquer que seja o desdobramento de sua ação na Ucrânia, já é o grande derrotado.

Rússia é uma ditadura mitigada. Pós-guerra e sanções, ele só permanecerá no poder com tirania explícita. Cometeu erros, mas contribuiu, apelando a Eça de Queirós, para retirar do tal Ocidente o manto diáfano da fantasia que cobria a nudez forte da verdade.

Potências não podem —ou não deveriam— romper as regras do direito internacional, pretextando ou não a intervenção humanitária. Quantas vezes, no entanto, também os EUA, com ou sem Otan, o fizeram e o farão?

No realismo de um Carl Schmitt (1888-1985), por exemplo, americanos e russos agiram em nome do que importa: a segurança, não os direitos. No plano intelectual, lutemos contra a herança de Thomas Hobbes, resgatando como inspiração moral a Escola Ibérica da Paz, nunca estudada por aqui.

O realismo cru não se ocupa de limitar o poder de Estado, mas de justificá-lo. A segurança como um bem que exclui os direitos abre a vereda para a terra dos mortos.

A parceria entre a Otan e os "primaveristas" da Líbia e da Síria, por exemplo, inventou a quimera do "jihadismo da liberdade", que fez da África um ninhal de terroristas e deu à luz o Estado Islâmico.

A máquina de guerra dos EUA, diga-se, está sempre ocupada em duas coisas: em combater terroristas e em fabricá-los. O vexame no Afeganistão, que Joe Biden tenta agora compensar, é eloquente. A propósito: quem vai um dia recolher as armas distribuídas às milícias ucranianas, às quais poetastros dedicam panegíricos canhestros?

Mais de uma vez os EUA e a Otan mandaram a carta da ONU às favas e atacaram países soberanos. Quantos males pode haver na Pandora aberta de Kosovo?

"Isso justifica Putin?" Não! Mas quem define quando a violação ao direito internacional deve ser punida ou aplaudida? Infelizmente, é o tal "realismo cru".

Quantas crianças a Arábia Saudita, aliada dos EUA, pode matar no Iêmen? Temos de rejeitar o pretexto da segurança como fundamento de invasões. Putin não me seduz. EUA não me enganam. São diferentes, mas se combinam.

Realismo sangrento e triunfo das regras, no entanto, não se plasmam no éter, mas na história.

A expansão da Otan para o Leste europeu pós-dissolução da URSS não era parte do jogo. Não houve proibição explícita, mas um acordo tácito de autocontenção. James Baker, um liberal, queria a Rússia na aliança. Henry Kissinger, oráculo ou monstro do realismo, defendeu uma Ucrânia livre, mas fora do grupo, seguindo o modelo da Finlândia.

Na semana passada, a Otan convidou o país a ser sócio, o que nos remete, a um só tempo, à revolução de 1917 e ao cerco de 872 dias a Leningrado, quando os finlandeses se juntaram a nazistas e fascistas.

A história não tem de oprimir como um pesadelo o cérebro dos vivos. Tem de instruí-los.

"Que países soberanos se juntem com quem quiser", diz o bobalhão. É essa a diretriz que emana de Washington nas suas "zonas de influência? Ignorar que o adversário à frente da Otan é a Rússia corresponde a abandonar os fatos. E Putin segue sendo um criminoso.

No discurso do Estado da União, Biden jactou-se de ter sequestrado parte das reservas russas e anunciou uma caçada aos "magnatas" mundo afora. Afinal, o país dispõe do FCPA (Foreing Corrupt Practices Act), que dá a seu Departamento de Justiça autorização para atuar como polícia do mundo. Em nome da... segurança!

A China apresentou-se como mediadora do conflito. Deve olhar com interesse para uns EUA capazes de tomar títulos de sua dívida comprados por terceiros. Quem tem Taiwan sabe enxergar uma metáfora, embora a comparação seja descabida porque a ilha nunca teve o status de país soberano.

Putin se lascou, mas contribuiu, com sua truculência, para revelar a nudez forte da verdade.

Enquanto não tem de enfrentar para valer a China, os americanos precisam da Rússia — e de Putin, o execrável — para brincar de Guerra Fria.

É o declínio do império americano no seu esplendor. E olhem que nem falei do "Bulava". Como? Você não sabe o que é Bulava? Corra para o Google e para seu livro de orações.

 

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