segunda-feira, 21 de março de 2022

Wilson Gomes*: Primeiramente, com licença

Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Já que estou chegando, permita que eu me apresente nos meus termos, antes que tome as suas próprias decisões

Já que estou chegando, e pode acontecer de a gente passar um tempinho juntos aqui, permita que eu me apresente nos meus próprios termos, antes que tome as suas próprias decisões, como é justo que o faça. São tempos difíceis, de raiva fácil, ódio espesso e julgamentos expressos, ainda mais quando se toca em política, e política é hoje tudo.

Não é que eu queira estragar a brincadeira "eu sei qual é a sua ideologia", a partir da qual hoje se decide que tipo de afeto e atenção o pobre escriba há de merecer. É só para oferecer o meu ponto de vista sobre a legítima questão "quem é o sujeito parado à nossa porta, chapéu na mão, ainda sem saber se pode entrar?". Dê licença, então.

Liberal. Sou bem liberal. Contra o absolutismo e por direitos e garantias individuais até a medula. Acredito em competição, merecimento, responsabilidade individual e tenho o maior respeito pelo individualismo. Acho que cada um deve viver a sua vida como bem lhe parece.

Podia ter dito progressista, mas sustento propositalmente que sou liberal em um país em que, para a esquerda, liberalismo não é o oposto do absolutismo, mas um outro nome para capitalismo, e liberal é basicamente o sujeito egoísta que odeia o Estado e não gosta de pagar impostos. Essa caricatura está para o pensamento liberal como a doutrina que pregam Malafaia e Marco Feliciano está para o cristianismo, quer dizer, é uma versão ruim e discutível e, mais importante, uma camuflagem.

Acho muito espertos os antiestatistas e os brutos darwinistas sociais que se vendem por liberais só para se diferenciar polemicamente da esquerda e para parecer descolados diante dos donos do dinheiro. Acho otário quem compra essa conversinha.

O "liberal na economia e conservador nos costumes", para ficar no padrão Paulo Guedes e dos "liberteens" da direita, são em geral apenas iliberais, liberticidas e autoritários, fazendo-se de liberais para não serem vistos como os ogros que são.

De esquerda, sim senhor. Acredito que os recursos da democracia devem ser usados para produzir justiça social, o máximo possível. Sociedades justas são muito melhores que sociedades iníquas e desiguais. Quando a maior parte dos cidadãos vive na miséria, na pobreza ou lutando todo dia para não ser tragado por elas, não lutar por algum nível importante de igualdade não pode ser só um traço de personalidade ou uma posição intelectual, mas questão de caráter.

Não sou, contudo, nem marxista nem anticapitalista. Ninguém precisa ser marxista para ser de esquerda; a esquerda já existia quando o marxismo foi inventado. Não troco a democracia e o liberalismo pelo socialismo nem em teoria nem na prática, mas acho que os princípios da democracia, inclusive a igualdade, devem guiar a economia de mercado, não o contrário.

Tenho horror ao populismo, não acredito na superioridade moral e intelectual do coletivo sobre o indivíduo, ou do povo, entendido como a classe subalterna de uma sociedade dividida em classes, sobre a elite. Nem vice-versa. Todo o mundo é capaz de tudo, no bom e no mau sentido. Abomino o autoritarismo, não tolero dedos em riste, não concedo razão automaticamente, nem a minorias nem à massa. Nem aos seus contrários. Então, cuidado, sou de esquerda, mas posso não ser da sua esquerda.

Democrata. A democracia é um regime sempre em processo, mas as suas premissas de que todas as pessoas são iguais enquanto membros da comunidade política e de que são todas igualmente livres, tornaram-na superior a todas as alternativas.

Acho poderosa a ideia de que ninguém está sob os pés de ninguém e de que cada um deve ter chances honestas de defender um ponto de vista, apresentar uma preferência ou rebater um argumento, venha de que fonte vier.

Humanista. Acredito em dignidade humana como valor e que todos os outros valores valem menos que isso. Considero a impiedade, a impermeabilidade do coração, um sinal de pobreza humana.

Sou racionalista. Não aceito norma, princípio ou fato que não possa ser examinado, discutido e criticado. Sou antidogmático a não mais poder. Tenho um pendor ao ceticismo, não por afirmar que não podemos conhecer, mas por preferir retardar o meu juízo.

Realista. Acho o romantismo político uma tragédia, inventada apenas para produzir frustração em si e dor nos outros. E para sobrecarregar a democracia com expectativas irrealizáveis. Idealistas e românticos políticos parecem legais, na verdade se tornam facilmente dogmáticos, fascistas e fundamentalistas.

Meio cínico. A vida faz pouco sentido, e a morte é certa. Nesse ínterim, rir de tudo e, sobretudo, de si, é o melhor que se pode fazer.

Agora, se der licença, entro.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de -Crônica de uma Tragédia Anunciada?

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