domingo, 10 de abril de 2022

Cacá Diegues: Viva a Vida!

O Globo

O que a gente pensa e deseja passa a ser a chave do juízo que faremos, na política e nas atividades sociais, de nós mesmos e dos outros

Está certo. Os caminhoneiros devem estar precisando mais do que os produtores de cultura. O Banco do Brasil reservou 8 bilhões de reais para suas necessidades, enquanto o presidente vetava o projeto, já aprovado no Congresso, que destinava metade desse valor aos produtores de cultura através da Lei Paulo Gustavo. Fausto Ribeiro, presidente do BB, anunciou que o banco e o governo estão “de braços abertos para todos os caminhoneiros”.

Numa democracia de verdade, um líder é sempre escolhido pela população para comandar a nação, atendendo às necessidades de todos os seus filhos, sem discriminação. Uma vez eleito, ele deve se tornar de todos, sem partido ou grupo social. Esse cara, num regime como o nosso, é o presidente da República. Ou seja, o capitão Bolsonaro.

Mas o capitão não gosta da gente, não quer saber de escritores, músicos, poetas, artistas de nenhuma especialidade, tem horror fóbico a quem mexe com essas coisas. Ele talvez tenha até uma certa razão – artistas estão sempre levantando problemas da nação e do povo da nação, como se coubesse a eles vigiar o que anda acontecendo de errado, anunciar o que precisa ser mudado, lutar por essas causas. Já o caminhoneiro pode ser corajoso, discordar e lutar contra o que não acha correto, mas na maioria dos casos está na cabine de seu caminhão, cantarolando com o rádio um trecho qualquer de Marília Mendonça.

Vi, essa semana, o magnífico documentário de Belisário Franca sobre Fernando Henrique Cardoso, sua eleição à presidência e os primeiros anos de governo. No documentário, “O presidente improvável”, FHC diz algo fundamental, um conceito que é a cara dele: “Não é verdade que a política seja a arte do possível; ela é, sim, a arte de tornar possível o que a gente pensa”. FHC estava certo. O que a gente pensa e deseja passa a ser portanto a chave do juízo que faremos, na política e nas atividades sociais, de nós mesmos e dos outros. Mesmo que nosso julgamento não seja tão objetivo.

Como o meu. Não consigo saber exatamente o que acontece com a humanidade neste momento, mas desde a pandemia me ocorre a ideia e tenho a sensação de que vivemos uma decadência moral e política, causa ou consequência da peste recente. De algum modo, devo ter razão.

Desde a Guerra do Peloponeso, a humanidade se enfrenta, quase sempre, entre dois polos radicais, o elogio da vida e o da morte. O que é dionisíaco contra o que é apolíneo. Mas é preciso descobrir onde está um e outro, cada vez que se opõem em luta polarizada. Muitas vezes nos enganamos e acabamos cerrando fileiras no equívoco ou mesmo torcendo pelo inimigo. Nos primeiros dias da guerra na Ucrânia tivemos esse problema, sem saber direito de que lado devíamos estar, embora a simpatia pelos ucranianos, com mais imaginação, mais fracos e mais pobres, fosse crescendo e se espalhando pelo mundo todo.

Não temos que escolher entre os caminhoneiros e os produtores de cultura. No fundo, é isso o que o governo deseja, dividindo a população do país entre trabalhadores e criadores, como se uns estivessem contra os outros, como se uns estivessem explorando os outros. E, o que é talvez mais grave, como se uns atrapalhassem a vida dos outros. Como se a polarização fosse sinal de que não podem conviver numa mesma sociedade.

Durante a Guerra Civil espanhola, os intelectuais e militares que defendiam o invasor comandado por Francisco Franco, responsável pelo golpe de estado de minorias que tomaram o poder e acabaram com os majoritários defensores da República eleitos pela população, esses líderes golpistas inventaram a célebre saudação: “Viva la muerte!”. Eles foram responsáveis pela Espanha de Franco, o regime fascista mais duradouro na história da Europa do século passado.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário