terça-feira, 26 de abril de 2022

Carlos Andreazza: Filho de faísca é fogo

O Globo

Duas ainda desfilariam, duas das pesadas; mas não podia crer que alguma me arrebatasse para além do que fizera a Unidos da Tijuca. Era impossível. Como poderia me impressionar mais que a Beija-Flor? Essa era a altitude da Tijuca. E ali passara mesmo algo diferente, enredo concebido por um criador que vinha de realizar desfile de identidade sem precedentes. Imbatível.

Estava errado. O que veio a seguir plantou nova gramática; desenvolveu-se em outro plano. Formulou e animou outro plano. Tornou vencido o que o antecedera. Datou a Vila Isabel, linda a Vila, que logo viria. Inaugurou outro tempo. Não deixou dúvida, embora o chão em que se processa o julgamento não seja apetrechado para comparar o que simplesmente não tem equivalência.

Do que, de quem, estou a falar?

Dê uma chance a este texto, você que não gosta de escolas de samba — e que aqui vai acostumado a ler análises sobre política. Peço licença — e sua leitura — para uma exceção. Licença também para que esta crônica tenha uma dimensão pessoal.

O clichê dirá que tudo é política. Por certo, todo movimento político deriva de escolhas. Ir à Sapucaí foi a melhor coisa que fiz, para mim, em muito tempo. Decidi me alienar. Começou na madrugada de sexta, manhã adentro, para que a alvorada se confundisse com o raiar do Império Serrano. Custa, mas vem. O desfile de 2020 fora o pior de sua história. O de 2022 foi o melhor da minha. Ainda não terminou.

Não terminou porque o vi, vejo, na poderosa passagem preta da Beija-Flor, cujos pilares de Cabana são o próprio fundamento de uma instituição cultural permanente, destinada à eternidade, independentemente de qualquer papai. Não terminou porque o projetei na revolução em que consistiu o acontecimento Grande Rio — aquela hora e pouco em que, a história diante de nós, algo se move, em que algo muda, mudou, para sempre. E nós — isto também uma raridade — percebemos. Nunca mais será igual.

Nunca mais terá fim a madrugada de domingo. Depois da Tijuca, meu Deus, a Grande Rio — aquela para a qual não há equivalência. Nenhum parâmetro. E decidi me alienar, em vez de me perguntar sobre quem pagara aquela conta.

Nunca mais fim. Ou eu teria de admitir que aquele abre-alas, aquele que avançava vermelho para além do céu e que, lá em cima, flamejante, ainda provocava de armar ousadia num simples desfraldar de bandeiras, que aquela engenharia de mundo poderia um dia desaparecer. Jamais desaparecerá. Não foi enredo. Foi a própria materialização de um universo. Algo da vida nasceu e existiu ali. Existe desde então. A Grande Rio tocou o céu com Exu.

O mundo — meu mundo — parou para que o Império Serrano desfilasse. Quase não fui. Tinha de trabalhar cedo no dia seguinte — e ir seria não dormir. Eu não me perdoaria se não fosse. Fui. Me entreguei, me apaziguei. Quase não fui; porque, na véspera, a gestão da impunidade, tão própria aos criminosos senhores das ligas, produzira, sob negligência do Estado, as condições que impuseram o esmagamento da menina Raquel. Desanimei-me. Mas fui. Alienado, em busca de alienação. Consciente dessa escolha.

O mundo acabou para Raquel. Mas eu fui. Precisava ir. Falo de peito aberto. Fiz a escolha certa; pelo entorpecimento da paixão por aquele estandarte. Ao meu lado foram Flora e Arlindo Neto, filhos de Arlindo Cruz, meu orixá. Fui pensando no Arlindo, com saudade do Arlindo, me lembrando de quando me ligava para perguntar o que achara do samba dele para o concurso do Império. Desfilei com Arlindo, ali, o Arlindo em seus filhos.

Fui, a vida seguindo. Era madrugada de sexta. E meu mundo parou, suspenso sob o encantamento de quando o desfile encaixa e já não há fronteiras entre avenida e audiência. Foi a experiência de liberdade absoluta tanto tempo depois; marco individual de esperança, de página virada — da fé em que sobrevivemos. Raquel não sobreviveu. É tudo tão ligeiro. Precisamos declarar nossos amores.

Na madrugada de domingo, pouco antes do desfile da Grande Rio, de cujo samba é um dos autores, Arlindinho me contaria a história que tornou esta crônica uma urgência. O Império Serrano apresentou, em 2007, um desfile absolutamente feio. O carnavalesco era Jack Vasconcelos, tantos anos depois criador do inesquecível desfile da Tijuca em 2022. O mundo avança, recria-se. Em 2007, porém, nada era bom. Nem o samba. O único samba ruim composto por Arlindo Cruz. Escrevi, aos 27 anos, imperiano apaixonado, uma crítica dura. Arlindo não gostou. Claro. Mas eu jamais poderia imaginar o que Arlindinho me revelou na Sapucaí; que, como produto dessa mágoa, o pai, meu ídolo, compusera o samba “Quem gosta de mim”.

E então veio a Grande Rio. Com samba do Arlindinho. Com samba do seu filho, Arlindo, veio o novo tempo da avenida, com todos os conflitos, com todas as incoerências. O futuro, o delírio. Um em que não haverá mais discurso intimidador de capitão-guimarães, de saco cheio de capitães. O futuro, o sonho: nosso Império, campeão do Acesso, de volta ao Grupo Especial, anunciando, hoje, o enredo em sua homenagem. Gosto de você, Arlindo Cruz. Amo você, maioral. E imagino a sua Babi lendo isso a seu ouvido. Ainda não terminou.

 

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