sábado, 16 de abril de 2022

Demétrio Magnoli: Jornalistas que tuítam

Folha de S. Paulo

O vício do Twitter desmoraliza veículos de imprensa e os próprios jornalistas

O Estatuto Militar proíbe a participação de militares da ativa em atos políticos. No Brasil atual, militares da ativa passam o dia espalhando consignas políticas nas redes sociais.

O New York Times, arrependido de uma orientação formulada muitos anos atrás, acaba de recomendar a seus jornalistas que se desintoxiquem do Twitter. No fundo, o memorando interno do jornal argumenta que o jornalismo profissional é incompatível com a militância política nas redes sociais.

"Podemos depender demais do Twitter como ferramenta de reportagem ou feedback —o que é especialmente nocivo quando nossos feeds se tornam câmaras de eco", diz o memorando.

As redes sociais fragmentaram a Agora. No lugar da antiga praça central do mercado de ideias criada pela imprensa, surgiram incontáveis palanques isolados: bolhas discursivas frequentadas por tribos ideológicas. O jornalista viciado no Twitter comporta-se como qualquer internauta: imagina que a sua bolha representa a "opinião justa" e nutre-se psicologicamente dos aplausos virtuais que obtém.

"Tuítes de impulso danificam nossa reputação jornalística (...) bem como nossos esforços para animar uma cultura de inclusão e confiança", alerta o NYT. O vício do Twitter desmoraliza a "reputação jornalística" dos veículos de imprensa e dos próprios jornalistas. Como solicitar ao leitor o pagamento por reportagens assinadas por jornalistas que, nas redes sociais, operam como militantes de projetos partidários ou movimentos sociais?

Abaixo da superfície, há algo mais. O memorando está dizendo que o programa jornalístico não combina com as certezas ideológicas absolutas típicas das tribos amalgamadas pelas redes sociais.

O que é programa jornalístico? A imprensa profissional só pode existir em sociedades abertas, que respeitam os princípios da liberdade de expressão e da pluralidade de ideias. Por isso, a imprensa não busca a "neutralidade". Jornalistas que defendem ditaduras nas quais a expressão (e a imprensa) tem que se submeter à "verdade estatal" só são jornalistas no nome.

Objetividade jornalística, por outro lado, é uma utopia necessária que deriva do programa jornalístico. A imprensa busca a objetividade (sem jamais alcançá-la) pois acredita que, para além das guerras de narrativas, existe uma verdade factual. A alegação de Putin, de pretender "desnazificar" a Ucrânia, esbarra no fato incontestável de que a Ucrânia não vive sob o nazismo.

Mas a busca da objetividade tem um sentido mais profundo, ligado ao princípio da pluralidade de ideias. O jornalista tem o dever de reconhecer a legitimidade básica das ideias dos diferentes atores envolvidos numa controvérsia ideológica —e de embeber seu texto no caldo desse reconhecimento.

Na ponta oposta, jornalistas que defendem a supressão de ideias expressas nos limites da lei não passam de censores disfarçados (exemplo próximo: o comitê Jocevir, Jornalistas pela Censura Virtuosa, nesta Folha).

O jornalismo de opinião, como esta coluna, ocupa lugar diferente, mas não imune aos desafios postos pelas redes sociais. Não é (não deveria ser) um vale tudo: o autor do texto opinativo também tem obrigações jornalísticas. Com exceção de quadros partidários, que veiculam explicitamente uma opinião coletiva, o colunista deve fidelidade a um contrato de confiança com o leitor.

O contrato implícito estabelece que ele exprime suas opiniões pessoais, amparadas num conhecimento formal ou numa experiência de vida. E, sobretudo, que tais opiniões não se subordinam a interesses de grupos (partidos, lobbies ou movimentos sociais). O colunista intoxicado pelas guerras virtuais perde a capacidade de separar seus pontos de vista das mensagens de correntes ideológicas que embalam sua vida intelectual.

Jornalistas não são soldados —mas, como eles, precisam decidir para quem batem continência.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário