domingo, 17 de abril de 2022

Dorrit Harazim: Ovo e segredo

O Globo

Muito além de seu significado no calendário cristão, a Páscoa tem um inigualável sabor de criança. Ela não só atiça ao máximo a imperiosa curiosidade dos pequenos, como infla de impaciência a gulosa imaginação própria àquela idade. Com ovos de Páscoa exibindo-se da quitanda à megastore, o atropelo de dúvidas e desejos infantis costuma ser intenso. É pra querer logo o maior de todos? Ou aquele menor e reluzente, na cor preferida? Como adivinhar se ele é oco? Ou, no chacoalhar da sacudida, como saber qual a surpresa que esconde? E esse outro que faz barulho maior?

Da criança bem-nascida àquela que jamais terá a ventura de segurar em mãos um chocolate para chamar de seu, imaginar que segredos escondem aquelas oferendas é parte da farra. De todo modo, é preciso paciência para abrir o caminho até chegar ao tesouro: soltar primeiro as fitas, depois o papel celofane, que está ali para proteger o papel laminado, que por sua vez protege a massa oval do chocolate. E é ela que preserva a surpresa final, o segredo mais bem guardado.

Em alguns aspectos, nada muito diferente do que vem sendo feito com os segredos da República bolsonarista acumulados desde 2019: o intuito é mantê-los trancafiados atrás de camadas e mais camadas de obstrução. Só que, ao contrário da celebração pascal, a obsessão central dos protetores da republiqueta está em fazer com que a imprensa e a opinião pública jamais tenham acesso a esses segredos. Nada de milagre da ressurreição para atos da Administração mais do que suspeitos. Enquanto estiver no poder, Jair Bolsonaro manterá a blindagem contra qualquer investigação capaz de expor seus muitos fios desencapados das leis e normas democráticas.

Mais recentemente, alguns desses fios têm suscitado curiosidade quase infantil na população civil. Difícil não querer saber mais sobre os R$ 546 mil reservados para a compra de toxina botulínica —o popular botox, de uso majoritariamente estético — entre 2018 e 2020, destinada a aplicação em militares. O Hospital das Forças Armadas, subordinado ao Ministério da Defesa então ainda ocupado pelo general da reserva Braga Netto (cotado companheiro de chapa do capitão em 2022), ainda estimou precisar de 50 caixas com cem unidades cada para 2021.

Mesmo em testas já botocadas, várias sobrancelhas alcançaram novas alturas ao saber que o Exército brasileiro desembolsara R$ 3,5 milhões na compra de 60 próteses penianas infláveis de silicone. Tudo com forte probabilidade de superfaturamento. Somado às suspeitas de sobrepreço (143%) na aquisição de 35 mil comprimidos de Viagra, comumente usado para tratamento de disfunção erétil, o Ministério da Defesa ainda deve explicações e transparência por ter gastado R$ 56 milhões de dinheiro público em filé, picanha e salmão para as Forças Armadas.

Tudo isso e mais os trocados em remédios contra calvície têm sido destrinchados a duras penas por uma plêiade de repórteres irrequietos do bom e velho jornalismo investigativo. Nomes como Bela Megale, do GLOBO, ou Guilherme Amado, do Metrópoles, são apenas alguns dos que não largam o osso quando farejam malfeitos. Sem essa tropa aliada à sociedade civil que combate a corrupção, e a alguns parlamentares (sempre os mesmos) com raro espírito de servidor público, a treva nacional seria funda.

Segundo dados coletados pelo Congresso em Foco, respeitado site jornalístico dedicado ao Legislativo, a Lei de Acesso à Informação (LAI), tão arduamente conquistada em 2011, anda chumbada. Em relação ao governo de Dilma Rousseff, aumentaram em 663% as negativas por sigilo para pedidos de informações específicas sobre a Presidência da República. Sobretudo em tempos bolsonaristas, isso é devastador. Apesar de imperfeita, a LAI brasileira é indispensável, pois estipula o dever do Estado de garantir ao cidadão o direito à informação. Ela também prevê que os dados solicitados, se e quando liberados, devem ser fornecidos de forma transparente, clara e em linguagem compreensível. Contudo, como no caso de tantas outras obrigações legais da máquina estatal, Bolsonaro radicalizou — além de não liberar nenhuma informação nociva a sua tentativa de reeleição, dobra a aposta e impõe sigilo máximo sobre o que quer manter lacrado.

O decreto de sigilo por cem anos da carteira vacinal do presidente, imposto em plena pandemia global de Covid-19, pareceu ser o que de fato era — sandice total. Já o inicial decreto de sigilo sobre os encontros de Bolsonaro, no Palácio do Planalto, com dois pastores picaretas chegados a uma propina, além de ligados ao Ministério da Educação, foi de uma transparência assombrosa. Pareceu admitir: aí tem, e muito. Nada a ver com a justificativa habitual de que as informações pedidas pelo GLOBO poderiam colocar em risco a vida do presidente e de seus familiares. Tudo a ver com o rombudo escândalo que parece ter contaminado a pasta. Se investigado a fundo, pode ser decisivo. O revertério do sigilo já revelou que um dos pastores delinquentes esteve 35 vezes no Planalto, e o outro dez. Uma CPI do MEC é o sonho do Brasil que precisa saber logo o que tem escondido dentro do ovo. Ou é proibido sonhar? Feliz Páscoa a todos. 

 

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