domingo, 24 de abril de 2022

Elio Gaspari: Bolsonaro não é Floriano Peixoto e Daniel Silveira não é Tiradentes

O Globo

Bolsonaro criou sua crise desafiando o Supremo Tribunal Federal no dia em que, em 1792, Tiradentes foi enforcado

Com as taxas do desemprego, da inflação e dos juros em dois dígitos, Jair Bolsonaro criou sua crise desafiando o Supremo Tribunal Federal. É tudo o que o país não precisa. Fez isso no dia em que, em 1792, José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, foi enforcado. O deputado Daniel Silveira não é o Tiradentes, nem Bolsonaro, que o perdoou, é o marechal Floriano Peixoto, que desafiou o Supremo Tribunal em 1892. Ele perguntou quem daria habeas corpus à Corte se não reintegrasse os generais que havia mandado para a reserva.

O Marechal de Ferro prevaleceu, e o tribunal negou o pedido de habeas corpus impetrado por Rui Barbosa. Meses depois, veio o troco e o tribunal recusou uma indicação de um ministro.

Reintegrar generais tinha a ver com a jurisdição do Executivo. O Supremo não poderia recolocá-los na tropa. Devolver a indicação de um ministro tinha a ver com a jurisdição do Tribunal. Floriano não poderia empossá-lo.

A vida seguiu, e o marechal viu-se sucedido pelo paulista Prudente de Moraes. Contrariado, foi-se embora sem lhe dar posse. Morreu meses depois, pobre e sem herdeiros. Passou pelo poder sem futricas ou escândalos.

O decreto de Bolsonaro cria dezenas de cenários, mas uma coisa é certa: o pena extingue a pena (oito anos de prisão), mas não seus efeitos, entre eles a inelegibilidade de Daniel Silveira. O “Tiradentes” de Bolsonaro não poderá disputar a reeleição para a Câmara. Esse impedimento fica na jurisdição da Justiça e não há decreto que possa revogá-lo.

Em poucas horas, evitando o confronto que Bolsonaro persegue, surgiu uma fórmula. O Supremo condenou Daniel Silveira a oito anos de prisão, o presidente perdoou-o, o réu continua inelegível e a vida segue.

D. Maria I não indultou Tiradentes e, por vários motivos, ganhou o apelido de a Louca. Ao contrário do alferes, o ex-PM Daniel Silveira não foi condenado por defender ideias virtuosas.

Lógica do toureiro

A pressa e o cenário utilizados por Bolsonaro para anunciar seu decreto perdoando Daniel Silveira sugeriram que ele estivesse chamando o Supremo Tribunal Federal para um confronto. Afinal, havia até quem pensasse em levar o deputado para o Planalto.

Essa é a lógica do touro. Ele vê a capa vermelha e vai chifrá-la.

A lógica do toureiro é outra.

Ele demarca o espaço do combate, e não se conhece caso de toureiro que tenha tentado chifrar o touro.

André Mendonça honrou a toga

O ministro André Mendonça foi terrivelmente ingênuo, até impróprio, na manhã de quinta-feira, quando foi às redes sociais para explicar seu voto do dia anterior, condenando o deputado Daniel Silveira. Justificou-se como cristão e como jurista.

Juízes, diferentemente de vereadores e deputados, não devem explicações ao seu eleitorado. Decidem, e ponto final. Mendonça decepcionou os bolsonaristas que esperavam dele uma conduta à la general Pazuello. Podia ter pedido vistas, retardando o resultado do julgamento do deputado. Seria uma chicana vulgar. Podia ter acompanhado o voto de seu colega Nunes Marques, absolvendo o réu. Preferiu condená-lo a dois anos de prisão.

André Mendonça e os mármores do Supremo sabiam que o tribunal condenaria Daniel Silveira, acompanhando o voto do relator Alexandre de Moraes. Afora a chicana do pedido de vistas, não havia o que fazer. Ao votar pela condenação mostrou que, uma vez no tribunal, demarcou a linha de sua independência. Por onde ela passa, só o tempo dirá, e ele ficará na Corte até dezembro de 2047: “Mesmo podendo não ser compreendido, tenho convicção de que fiz o correto.”

Quando um cidadão é nomeado para o Supremo Tribunal Federal, espera-se dele apenas isso. É verdade que alguns ministros do tribunal se comportam como criaturas da política, ora buscando holofotes, ora cabalando nomeações de servidores. São pontos fora da curva do ideal.

Ao se explicar nas redes sociais, Mendonça foi ingênuo. Contrariou o desejo de pessoas que esperavam dele o comportamento de um miliciano e nada poderá fazer, salvo alistar-se numa milícia judiciária.

Paralelos com a Suprema Corte dos Estados Unidos são um exercício ineficaz, porém ilustrativo. Juiz não tem eleitorado, e está acontecendo com André Mendonça o mesmo que sucedeu ao juiz David Souter nos anos 90 do século passado. Seu caso merece ser relembrado.

Souter era terrivelmente conservador

Em 1990, o juiz William Brennan Jr. decidiu deixar a Corte Suprema dos Estados Unidos depois de 34 anos de serviço, durante os quais havia se tornado um pilar do liberalismo. Para o governo de George Bush 1º, essa decisão parecia um presente dos céus. Tratava-se de colocar no lugar um juiz terrivelmente conservador.

O chefe de gabinete de Bush era John Sununu, um republicano de raiz que jogava bruto. Ele conseguiu que o presidente indicasse David Souter, um juiz de seu estado. Era jovem (51 anos), duro nas sentenças e um conservador de vitrine, quase um eremita. Ouviu um palavrão de uma assessora e, no dia seguinte, presenteou-a com uma barra de sabão. Mal via televisão (em preto e branco) e só assinava as edições dominicais do “New York Times”. Dirigia um carro velho com o assento quebrado e por causa de um desencanto da mocidade, tornara-se um solteirão.

Souter foi para a Corte quando Bush tinha armado o bote para revogar a decisão que havia reconhecido o direito das mulheres de interromper a gravidez. Surpresa: o juiz se alinhou com os moderados. Para ele, revogar a decisão seria “uma rendição à pressão política”. Aos poucos, para decepção dos Bush e de Sununu, juntou-se à colega Sandra O’Connor (ela também republicana), neutralizando por anos a bancada conservadora no tribunal. Sua explicação era simples: não estamos aqui para dividir o país.

Em 2000, quando a Suprema Corte, por maioria de votos garantiu a vitória de George Bush 2º contra Al Gore, Souter desencantou-se e começou a pensar em ir embora. Tinha apenas 61 anos. Esperou a eleição seguinte, vencida por Barack Obama e renunciou em 2009.

Está com 83 anos, não vai aos holofotes e leva a mesma vida de sempre.

Troco

Nas próximas semanas será possível medir o prestígio do ministro Kassio Nunes Marques no Planalto.

Bolsonaro nomeará dois novos ministros para o Superior Tribunal de Justiça. Nunes Marques tem um candidato e uma antipatia. Ele trabalha pelo desembargador Carlos Augusto Pires Brandão e não tem gosto pela possível indicação de Ney Bello.

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