sexta-feira, 22 de abril de 2022

José de Souza Martins*: O brasileiro tem memória política curta

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O brasileiro esquece com facilidade as injúrias, as patifarias antissociais, as agressões ao próprio direito de ser representando no processo político

O período do governo Bolsonaro tem servido como uma espécie de período experimental de conhecimento das novas fragilidades do processo político no Brasil. Não só pelos constantes desafios a valores, costumes e regras da própria ciência no que diz respeito à gestão política do país, mas também pelas reiteradas ações de desconstrução das instituições.

É um governo interessante como cobaia da curiosidade científica a respeito da vulnerabilidade da ordem social e política. Muita coisa será aprendida até o final do ano e o final do governo para que os partidos democráticos possam se reorganizar e possam definir e empreender as profundas reformas políticas de que o país carece. Para que não recaia nas armadilhas da improvisação, do amadorismo e do autoritarismo embutido nas estruturas fundamentais do Estado brasileiro.

O novo governo chegou aparelhado por agentes de mentalidades exóticas, grupos extraoficiais de poder, invasivos, impunes e dotados de suficiente ousadia para desmontar o Estado e fragilizar a consciência crítica própria de uma sociedade que com dificuldade tem construído sua democracia.

Um de seus aspectos mais problemáticos é o de que é ele um governo que inclui em suas ações a meta implícita de reduzir a durabilidade da memória política, de modo a atenuar o que nela possa gerar o julgamento de seus atos contrários ao bem comum.

Uma indicação da anomalia, que marca este momento da história política brasileira, é o da diferença de duração das lembranças da tragédia da gripe espanhola, de 1918, na mesma geração de sua ocorrência, em comparação com a curta durabilidade da memória da pandemia de covid-19, antes mesmo de acabar. Apesar dos indícios de que dois terços dos que morreram poderiam ter sobrevivido, se providências de governo tivessem sido as recomendadas pela ciência e tomadas com a prontidão própria de uma operação de guerra pela vida.

Apesar de termos tido um general no Ministério da Saúde e termos um capitão na Presidência da República, a incapacidade para tomar as medidas adequadas no tempo adequado não tem repercutido duradouramente na memória da população. As pesquisas sugerem que a consciência popular, aparentemente, foi amansada em favor dos responsáveis pelos erros cometidos.

A política depende muito da memória social dos acontecimentos propriamente políticos, como esses que trouxeram dor e luto a centenas de milhares de pessoas e medo e apreensão a milhões de outras.

Desde a conspiração que antecedeu as eleições de 2018 não tem havido um único dia sem notórios retrocessos na democracia brasileira. O Estado brasileiro está infiltrado por agentes subversivos do retrocesso, empenhados em apagar a memória do que somos e das lembranças de nossas possibilidades como povo.

Uma das armadilhas tem sido a de reinventar a história social e política e recontá-la na perspectiva dos ligeirismos da sociedade de consumo e das coisas e realidades descartáveis. Entre as consequências está o empenho em refazer a consciência social para definir o povo como agente secundário da história, agente descartável, e dela um sujeito politicamente mínimo.

Um dos resultados antidemocráticos desse crime de lesa-pátria é o do surgimento de uma temporalidade pós-moderna da memória política, decorrente de uma engenharia de limitação de sua durabilidade.

Estamos vivendo o momento decisivo em que essa memória ou manifesta sua consistência ou sua fragilidade. O quanto irregularidades que ferem a sensibilidade da consciência popular deixaram ou não marcas que definirão acatamento ou repúdio. O que perdura daquilo que em certo momento a população definiu como acerto ou aquilo que definiu como erro. O que deve ser lembrado ou esquecido.

Já se vê os indícios do que se salvou desse peneiramento. E vamos descobrindo que o brasileiro esquece com facilidade as injúrias, as patifarias antissociais, as agressões ao próprio direito de ser representando no processo político. Esse período tem sido um período de verdadeira provação para o povo brasileiro. As imensas e fatais agressões e omissões durante o período da pandemia, a mutilação da cidadania, a demolição das instituições, o desafio cotidiano à constituição e às leis. Tudo vai sendo esquecido como indicam as evidências das percepções eleitorais.

Mas há entre nós a característica cultural da memória profunda, de dinâmica mais lenta do que a da eficácia superficial de resultados da tecnologia de manipulação da consciência social.

Ela tem emergido ao longo da história brasileira e está reemergindo agora, expressão do inaceitável. A consciência das necessidades sociais que só podem ser saciadas com a ruptura e a superação.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

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