sexta-feira, 8 de abril de 2022

José de Souza Martins*: Qual é a função política da ignorância

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Oportunismo descarado remexeu o sistema político e já assegurou que a vontade da maioria será convertida nos truques do nosso partidarismo anômalo

As notórias e mal disfarçadas piruetas eleitorais das últimas semanas indicam o estreitamento da via de revitalização da democracia no Brasil. Sempre fomos frágeis e mesmo relutantes no compromisso com a possibilidade de uma ordem política democrática. Especialmente depois do golpe militar de 15 de novembro de 1889, o Exército passou a pressupor que na falta do imperador deposto, que personificava a nação, cabia-lhe agora assumir a função de tutor da pátria.

Tutor da pátria é o povo, a massa dos desfardados. Têm todos, gostem ou não, o dever cívico de curvar a cabeça à vontade soberana que daí decorre. Os fardados estão lá para servir e não para ser servidos. O país é governado pela Constituição e não por portarias administrativas nem por falações de porta de palácio. Quando alguém se equivoca quanto a isso, o STF toma a providência das decisões jurídicas que acordam ignorantes e distraídos.

Desde a eleição de 2018, a expressão eleitoral da vontade do povo tem sido interpretada por uma só pessoa e seus coadjuvantes sem mandato, os dos núcleos paralelos de poder. E, também, os que têm mandato, mas não têm pelo mandato o respeito que a lei prescreve. Um subjetivismo impressionista é hoje o senhor do poder no Brasil, com a cumplicidade do sistema político de joelhos e em boa parte motivado por interesses pessoais e não pelos interesses soberanos da nação.

Os episódios destes dias incluem a manifestação do Ministério da Para dizer o que não aconteceu e justificar o que está acontecendo. Um modo de ignorar o que ocorreu no escuro daquela noite de 1º de abril.

Uma narrativa fundamentada teria que começar pela revelação dos detalhes do andamento do golpe, com a voz do presidente americano Lyndon Johnson aprovando a derrubada do governo constitucional em conversa com espiões e articuladores americanos baseados no Rio de Janeiro. Um porta-aviões dos EUA estava posicionado no Atlântico Sul para eventual interferência militar aqui no Brasil. Uma das conversas é sobre o deslocamento dessa nave para assegurar aqui o golpe estrangeiro.

Um balanço sério do que foi o regime militar implica considerar alguns avanços importantes na atenuação do direito de propriedade para viabilizar uma reforma agrária se não tivesse sido ela técnica política de contenção de uma presumível, mas não provável revolução camponesa.

Direito obsoleto, produto das circunstâncias do encaminhamento da abolição da escravatura, tornou-se o fundamento da posse territorial da pátria por uma minoria social e racial que bloqueava o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

O manifesto de agora omite esse fato. Não eram os comunistas que ameaçavam o país. Eram e o foram os que, usando o pretexto do combate ao comunismo, combatiam o desenvolvimento capitalista também como desenvolvimento social. Bloquearam o desenvolvimento possível de um país industrializado para transformá-lo num país rentista, que fabrica desmesuradas fortunas pessoais e desmesuradas misérias pessoais ao mesmo tempo.

Somos hoje colônia disfarçada em cuja reprodução contínua a ignorância é um instrumento fundamental. Narrativas como a do pronunciamento militar, não só de um membro do governo mas de vários, constituem uma técnica de produção da ignorância como instrumento de uma estrutura de poder destinada a mascarar os desvios autoritários do governo e o despistamento do eleitorado.

Isso tudo recobre de incertezas o caminho da urgente e necessária substituição do governante e do que ele representa como personificação do atraso social e político. Nesta altura, o país precisa quase desesperadamente de um projeto de superação dos retrocessos sociais, políticos e econômicos daquela tormentosa e retrógrada concepção de Brasil que saiu numericamente vitoriosa nas eleições de 2018.

Em face desses mecanismos de inviabilização da eficácia eleitoral do voto, o Brasil só tem a alternativa de uma grande frente política, uma coalizão que junte, na convergência das diferenças e dos diferentes, a construção de uma verdadeira e sólida democracia. É preciso, com urgência, desconstruir a desconstrução das instituições.

Lutar pela democracia no Brasil de hoje significa o prioritário combate à mentira na forma de governar pelo engano, desmentir os mentirosos para superar a ignorância.

Não há nenhum sinal nesse sentido. Muito ao contrário, nos últimos dias, nos arranjos pré-eleitorais, um descarado oportunismo remexeu todo o sistema político e de vários modos já assegurou que a vontade da maioria será convertida nos truques e ciladas do nosso partidarismo anômalo para assegurar que o ruim fique pior e que tudo mude para permanecer.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento - ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

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