quinta-feira, 28 de abril de 2022

Mario Vitor Rodrigues: Debate franco ou palanque moral?

O Globo

O calendário marcava 9 de setembro de 2016. Durante evento para arrecadação de fundos de sua campanha — hospedado pela Casa Cipriani, em Nova York, e tendo como estrela da noite Barbra Streisand —, a então candidata democrata Hillary Clinton não mordeu a língua e afirmou que metade dos eleitores de Donald Trump era “deplorável”. Quase dois meses antes, na convenção do Partido Democrata, Michelle Obama já demonstrava intimidade com o salto alto: “Quando eles se rebaixam, devemos nos elevar”. Pouco importa se elas tinham razão, ambas assumiam o discurso de superioridade moral que regia o debate nos Estados Unidos. Deu no que deu: Trump na cabeça.

Por aqui, desde 2013 vivemos catarse parecida. As manifestações de junho e o impeachment de Dilma Rousseff ajudaram a confundir o diagnóstico, mas a verdade é que, para além dos esquemas de corrupção petistas, o eleitor que antes votava no PSDB, e por osmose passou a eleger o PT, já demonstrava cansaço dessa conversa. Nosso “deu no que deu” não poderia ter sido mais sintomático: se Dilma se reelegeu com 54 milhões de votos, Bolsonaro, apenas quatro anos depois, venceu com 57 milhões.

O tempo passou, mas pouca coisa mudou. Vive-se sob o jugo de um cartel de visão de mundo única e virtuosa, disposto a impor seus antolhos ideológicos. Os que se atrevem a questioná-lo pressentem a mesma expectativa de um impala quando se arrisca a chupitar às margens de um rio em plena savana. Convém ficar atento, o ataque em bando é garantido.

Tratando-se de política, vale dizer que é impossível desconsiderar o retrocesso civilizatório patrocinado pelo governo de Jair Bolsonaro. Sob seu comando, as instituições são diuturnamente solapadas e, não bastasse seu despreparo ao lidar com os desafios domésticos, a rudeza para tratar de temas internacionais a cada dia avacalha mais nossa imagem no cenário global. Tudo isso é verdade, porém nem os maiores transtornos que uma gestão tão calamitosa é capaz de provocar podem justificar os danos provocados pelo debate pasteurizado.

Nossos cruzados do bem não se dão conta, mas essa ira santa foi ingrediente fundamental para que Jair Bolsonaro e tantos outros na sua esteira alcançassem o poder. Será em boa parte graças a ela que tudo se encaminha para mais um embate eleitoral deprimente sob todos os aspectos no fim do ano, que deverá tornar as conversas e a própria convivência ainda mais insuportáveis.

Desgraçadamente, essa sanha por uma oportunidade mínima que seja de posar como paladino moral não se limita à seara política. A convocação da seleção brasileira, o relaxamento de medidas restritivas à pandemia, a guerra na Ucrânia, até a compra do Twitter, tudo vale desde que enseje autoelogio e movimentos de manada.

Para além de extremos como a defesa de regimes de força, volta da ditadura ou pôr em risco a vida de milhões, como ocorreu durante o momento mais difícil da pandemia, convém aos ensimesmados entender que, fora de suas bolhas, a vida real admite divergências. E que quem se opõe a suas vontades nem sempre é indigno, detestável ou deplorável.

Seria uma reflexão fundamental para entendermos o caminho percorrido até aqui e o que desejamos para nosso futuro, porém talvez seja pedir demais esperar que seja encarada com a devida franqueza.

No fim das contas, a polarização está sempre aí, ligeira, para simplificar dilemas que não cabem numa postagem de rede social e, ainda mais importante, eficiente na construção de personagens de virtude moral acima de qualquer suspeita.


* Jornalista

 

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