sexta-feira, 1 de abril de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Desistência de Moro afunila opções de centro

O Globo

A decisão de Sergio Moro de trocar o Podemos pelo União Brasil e, principalmente, a candidatura ao Planalto por uma à Câmara comprova que a corrida eleitoral deste ano, assim como todas as demais, ainda guarda surpresas. Até o momento, o ex-juiz era o pré-candidato de centro mais bem colocado nas pesquisas, com pontuação em torno de 7%.

Em movimento aparentemente calculado, o tucano João Doria ameaçou abandonar a disputa pela Presidência para, em questão de horas, voltar atrás e anunciar que sairá do governo de São Paulo para concorrer. Com a desistência de Moro, terá de provar que sua candidatura tem condição de sair do chão.

O jogo ainda está em aberto, e toda atenção agora estará voltada para o chacoalho prestes a ocorrer nas pesquisas de intenção de voto. A esperança de Doria é quebrar a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL), os dois primeiros colocados.

Apesar das conquistas inegáveis de seu governo, seu desempenho sofrível tem sido insuficiente para ultrapassar até a margem de erro. Em matéria de rejeição, ele só perde para Bolsonaro, no máximo também para Lula. O efeito no eleitorado da encenação de ontem ainda é uma incógnita, mas não será nada difícil a pantomima enfraquecer ainda mais a candidatura Doria.

Moro, em contrapartida, antes de engatar na campanha para deputado federal, deveria explicar os motivos que o levaram a desistir. Embora seu poder de transferir votos seja desconhecido, poderia também apontar quem será seu candidato (logicamente, nem Lula nem Bolsonaro). Parte de seus eleitores deverá optar por outros nomes de centro, campo em que estão Doria, a emedebista Simone Tebet e, mais bem colocado que ambos, o pedetista Ciro Gomes (com ao redor de 7%). Não será desprezível, claro, a migração em direção a Bolsonaro, hoje porta-voz do sentimento antipetista.

A desistência de Doria abriria a possibilidade à candidatura do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, pelo PSDB. O gaúcho perdeu as prévias tucanas para o paulista, mas nunca desistiu da Presidência. Chegou a avaliar a saída do partido para ser candidato por outra legenda, opção que acabou descartando. Leite tem um perfil distinto de Doria. É um dos postulantes com menor rejeição e também um dos menos conhecidos. Isso lhe dá oportunidade de se apresentar na campanha como novidade, numa eleição em que a rejeição ao atual governo permite antever a presença do espírito de mudança.

Tudo, como se vê, continua indefinido. E ainda faltam sete meses para a abertura das urnas. Se — eis a grande incógnita — houver mesmo afunilamento das candidaturas alternativas a Lula e Bolsonaro num único nome, ainda haverá o desafio de superar um dos dois líderes para chegar ao segundo turno.

Antes da decisão de Moro, o nome a bater era Bolsonaro, que soma em torno de 30% das preferências. Em ascensão no último levantamento e com a provável chegada de apoiadores que estavam com o ex-juiz, o presidente deverá se fortalecer. Criar uma candidatura alternativa à polarização continua uma missão difícil, embora não impossível. A desistência repentina de Moro e a hesitação oportunista de Doria abrem, sem dúvida, caminhos a explorar.

Nota do Ministério da Defesa distorce os fatos para elogiar o Golpe de 1964

O Globo

Não é por ter acontecido há 58 anos — e, portanto, por não estar na memória da maioria dos brasileiros — que a história do Golpe Militar de 1964, que instaurou duas décadas de uma ditadura sangrenta no país, pode ser reescrita ao sabor desta ou daquela ideologia. É flagrante a desonestidade com essa história, recente e dolorosa, que emana da nota divulgada na quarta-feira pelo Ministério da Defesa. Assinada pelo até então ministro Walter Braga Netto e pelos comandantes das três Forças — Almir Garnier Santos (Marinha), Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (Exército) e Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica) —, ela distorce fatos ao dizer que “o movimento de 31 de março de 1964 é um marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época”.

Como pode ser um marco de evolução um regime que rasgou a Constituição, fechou o Congresso, cassou políticos, aposentou ministros do Supremo, censurou a imprensa, sufocou a liberdade de expressão, institucionalizou a tortura e deu cabo de opositores negando às famílias o direito de velar seus corpos? Se o Golpe de 1964 pode ser considerado um marco, é de um dos momentos mais sombrios da História do Brasil. Precisa, sim, ser lembrado, mas como a ruptura que foi, para que não seja repetido na nossa democracia.

Outro equívoco é afirmar que “nos anos seguintes ao 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político”. Que estabilização? Nem o regime instaurado foi estável. No fim dos anos 1960, houve “o golpe dentro do golpe”, que tornou a ditadura mais radical, com instrumentos como o AI-5, permissão ao governo para cometer todo tipo de arbítrio. É certo que o país cresceu em média 6,3% ao ano no período, mas o “milagre econômico” era mais uma peça publicitária. Como afirmou no GLOBO a colunista Míriam Leitão, “houve duas recessões, calote da dívida externa, e no fim o país estava com uma hiperinflação que foi debelada apenas na democracia”.

Tanto quanto o conteúdo da nota, preocupa o contexto. Compreende-se que o ministro Braga Netto, cotado para ser vice na chapa do presidente Jair Bolsonaro, ocupa um cargo político. Mas os comandantes das três Forças, não. A linha que separa os quartéis da ideologia do Planalto deveria estar clara à luz da Constituição. Especialmente num cenário em que Bolsonaro volta a atacar instituições da República e a demonizar urnas eletrônicas, insinuando não aceitar o resultado das próximas eleições e ameaçando a democracia com novos arroubos golpistas.

Já há crises suficientes na agenda política nacional, a maioria fabricada pelo próprio Bolsonaro. Não precisamos de mais uma. A defesa intransigente da democracia é dever de todos os brasileiros. Nas mais de três décadas desde a redemocratização, vivemos o período democrático mais longevo da História do Brasil, tantas são as reviravoltas políticas gravadas na trepidante memória do país. Este sim deveria ser um marco para celebrar todos os dias.

Terceiros fora

Folha de S. Paulo

Defecção de Moro e oscilações de Doria tornam mais difícil quebrar polarização

O recuo do ex-juiz Sergio Moro na disputa pela Presidência da República em outubro e a comédia de erros encenada pelo tucano João Doria para manter-se na corrida pelo Planalto acentuam a contraposição entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL).

A força gravitacional dos dois polos por ora vai destruindo ou enfraquecendo tudo o que possa ameaçar o seu protagonismo, numa espécie de profecia que se autorrealiza —a expectativa de mau desempenho estimula a defecção e subtrai apoio dos desafiantes, o que por sua vez reforça a polarização.

No caso de Moro, que com 8% das intenções de voto apareceu empatado na terceira colocação com Ciro Gomes (PDT) no mais recente Datafolha, a redução de ambições foi drástica. Trocou o Podemos pela União Brasil e agora pode disputar uma vaga de deputado federal no estado de São Paulo.

Dá uma vez mais vezo o ex-julgador da Lava Jato a quem o critica por ajustar-se docilmente a conveniências mesquinhas da política. Deixou a magistratura para ser ministro de Bolsonaro; muda de partido como quem troca de camisa; abala-se para a opção que mais facilmente lhe assegure um cargo nos próximos quatro anos.

É possível também que a capitulação de Sergio Moro reflita em parte o cálculo de otimização de bancadas de que se ocupam as legendas. Quem não tem candidato presidencial forte para impulsionar a eleição de deputados inclina-se a aliar-se com mais fluidez nos estados e a gastar mais com campanhas de postulantes ao Legislativo.

Fluidez, aliás, abundou nas oscilações vertiginosas do governador paulista em torno de seu destino político nesta quinta (31). O dia começou com a notícia de que ele desistiria de concorrer ao Planalto, sairia do PSDB e cumpriria até o final o seu mandato no estado.

Terminou com tudo isso desfeito e o plano original retomado, numa autêntica "guinada de 360 graus".

Se não passou de subterfúgio para solidificar o apoio de seu partido, rachado, e atrair atenção para seu discurso de despedida, o tiro pode ter saído pela culatra. O João Doria que saiu desse episódio rocambolesco inspira ainda menos confiança do que o que nele entrou, marcando 2% no Datafolha.

Pela primeira vez na República, ao que tudo indica, disputarão o cargo político mais elevado do país um ex-presidente e o presidente na função. São, ademais, duas figuras populares, sobejamente conhecidas do eleitor. Seria normalmente dificultoso uma outra candidatura competir nessas condições.

A escassez de opções, porém, não é boa para o Brasil, que só viu crescer nos últimos anos a pilha de obstáculos ao seu desenvolvimento.

Regalia descabida

Folha de S. Paulo

É inaceitável PEC que prevê reajustes a cada cinco anos para juízes e promotores

Anos eleitorais despertam uma generosidade temerária no Congresso Nacional. É com esse espírito que os parlamentares ameaçam tirar do arquivo a proposta de emenda constitucional conhecida como PEC do Quinquênio.

O texto, que aumenta em 5% os vencimentos de juízes e promotores a cada cinco anos trabalhados, foi apresentado no Senado em 2013, mas desde então passou quase todo o tempo parado na Casa.

Nos últimos dias a PEC —que institui mais um privilégio para as categorias que já estão entre as mais bem remuneradas do serviço público— voltou a ser comentada e a receber emendas, num sinal de que está prestes a ser ressuscitada.

Está em debate, ademais, a extensão da benesse. A versão original da proposta implica um gasto adicional para os cofres públicos estimado em R$ 3,6 bilhões anuais; se o quinquênio for estendido a advogados, defensores e delegados, são mais R$ 900 milhões; se valer para todo o funcionalismo, como quer uma das emendas, a conta sobe para R$ 10 bilhões.

Uma estratégia usual para a aprovação de farras orçamentárias desse tipo é acenar com a criação da regra mais catastrófica —para, depois de alguma negociação, definir outra de impacto menor.

Dada a situação de penúria das contas públicas e os gastos com pessoal já excessivos do Judiciário, a PEC deveria ser rejeitada em qualquer uma de suas versões.

Daí não se segue, ressalve-se, que não existam problemas a resolver em certas carreiras do serviço público. Um deles, que motiva a defesa dos quinquênios, é que a diferença entre os salários iniciais e finais se estreitou em demasia, o que pode tornar-se um óbice à retenção dos melhores profissionais.

Embora os salários pagos pelo setor público sejam, na média, maiores que os da iniciativa privada, a relação não vale indistintamente para todas as carreiras. Um advogado que chegue à condição de sócio nos melhores escritórios do país, por exemplo, em geral terá ganhos superiores ao teto da administração (R$ 39.293,32 mensais).

Pondere-se, entretanto, que o Estado oferece a vantagem da estabilidade no emprego; no Judiciário, em particular, magistrados desfrutam, na prática, de vencimentos superiores ao teto, além das férias de 60 dias.

De todo modo, trata-se de questão a ser resolvida em uma reforma administrativa, não por meio de um trem da alegria oportunista.

A indignidade da fome

O Estado de S. Paulo

Um em cada quatro brasileiros vive em insegurança alimentar. Isso deveria tirar o sono de qualquer governante minimamente compassivo

No extenso rol de atribuições de um presidente da República, que vão muito além daquelas descritas formalmente no texto constitucional, nenhuma é mais importante do que dotar o País das condições mínimas para que seus governados tenham uma vida digna. No fim do dia, a missão precípua do chefe do Poder Executivo é essa. Todas as políticas públicas de qualquer governo responsável deveriam ser orientadas primordialmente por esse norte moral.

Mas o direito a uma vida digna tem sido sonegado a milhões de brasileiros. Em pleno século 21, o patrimonialismo, hoje materializado em “rachadinhas” e “orçamentos secretos”, segue como o dínamo de um sistema político que deveria assegurar aquele direito básico, impedindo que o Brasil consiga, enfim, livrar-se dos grilhões do passado. Enquanto isso, a brutal desigualdade entre os cidadãos e uma permanente sensação de injustiça social se fazem sentir por um número cada vez maior de brasileiros.

O que pode ser mais indigno do que a dor da fome? Qualquer governante minimamente compassivo deveria perder o sono sabendo que muitos de seus governados não têm o que comer. Já se noticiou que o presidente Jair Bolsonaro não dorme bem, mas as causas de sua insônia provavelmente são outras. Com um arremedo de programa de transferência de renda, o Auxílio Brasil, Bolsonaro apenas finge que ataca o problema da fome.

Uma recente pesquisa do Datafolha revelou que 23% dos brasileiros vivem em domicílios atendidos pelo programa lançado pelo governo no fim do ano passado como substituto do Bolsa Família, marca fortemente ligada ao PT, e do auxílio emergencial, que socorreu os desvalidos nos momentos mais dramáticos da pandemia de covid-19. O maior número de beneficiários do Auxílio Brasil está concentrado na Região Nordeste. Lá, 37% dos entrevistados pelo instituto de pesquisa disseram pertencer a famílias atendidas pelo programa.

Um dado da pesquisa revela o grau de improviso na concepção do Auxílio Brasil – uma cartada meramente eleitoreira – e a falta de condições estruturais para que os brasileiros mais pobres, de fato, tenham condições de melhorar de vida. Para a grande maioria dos entrevistados (68%), o valor do benefício é insuficiente para a subsistência. Apenas 29% consideram os cerca de R$ 400 suficientes. Entre os que pertencem ao estrato mais pobre da população (com renda mensal familiar de até dois salários mínimos), a insatisfação com o Auxílio Brasil é ainda maior: 71% estão descontentes com o que recebem. E não estão descontentes simplesmente porque querem mais e mais dinheiro do Estado. Estão descontentes porque o valor que recebem é corroído por uma inflação renitente e, de fato, não basta para garantir comida na mesa durante todos os dias do mês.

Segundo o Datafolha, entre os brasileiros mais pobres que recebem o Auxílio Brasil, 35% afirmaram não ter comida suficiente em casa para satisfazer as necessidades da família. Considerando o total da população, são 24% os brasileiros nessa condição de insegurança alimentar – um contingente de cerca de 50 milhões de pessoas. O problema aflige principalmente as famílias da Região Nordeste (32%). Nas Regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte, 23% das famílias se disseram afetadas, e na Região Sul, 18%.

Um programa social tão mal-ajambrado decorre fundamentalmente da má concepção que Bolsonaro faz do que seja governar. O presidente jamais esteve interessado em melhorar a vida de seus governados e entregar a um eventual sucessor um país melhor do que aquele que recebeu. Bolsonaro só tem olhos para o seu projeto de poder e para a proteção dos seus familiares e aliados. Tudo que diz ou faz gira em torno desse desiderato.

Sobre a mesa de trabalho do próximo presidente – que, para o bem do Brasil, não haverá de ser Bolsonaro – estará, entre muitos outros, o grave problema da insegurança alimentar que, hoje, assola um em cada quatro brasileiros. O atual mandatário jamais se esforçou para formular uma política eficaz de transferência de renda. No máximo, buscou emular sua nêmesis, Lula da Silva, na formação de uma legião de cativos de projetos assistencialistas.

A lei também vale para o presidente

O Estado de S. Paulo

Ao indeferir o pedido de arquivamento da PGR, ministra reitera aspecto fundamental do regime republicano: o presidente tem o dever de zelar pelo respeito à lei

Na terça-feira, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), indeferiu o pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para arquivar o Inquérito 4875, que investiga o suposto crime de prevaricação por parte de Jair Bolsonaro no caso da negociação na compra da vacina indiana Covaxin. A decisão da ministra Weber não envolve nenhum juízo sobre o comportamento de Bolsonaro, que ainda precisará ser apurado. O indeferimento do arquivamento refere-se aos deveres do cargo de presidente da República, com o reconhecimento de que eventual inércia do chefe do Executivo federal perante a notícia da ocorrência de crimes pode configurar crime de prevaricação.

No pedido, Augusto Aras defendeu que a conduta atribuída a Jair Bolsonaro – a suposta omissão perante a denúncia feita pelos irmãos Miranda –, mesmo se fosse comprovada, não configuraria crime de prevaricação, uma vez que esse dever não está previsto nas atribuições constitucionais do presidente da República. Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), o ato de ofício mencionado no tipo penal do art. 319 do Código Penal – “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” – precisaria estar previsto expressamente. Nessa lógica, no caso, não haveria um ato de ofício a ser exigido do presidente da República para que se possa cogitar em prevaricação.

Na decisão, Rosa Weber discorda veementemente da posição da PGR. Mesmo não constando das atribuições do art. 84 da Constituição, “é perfeitamente possível extrair, do próprio ordenamento jurídico-constitucional, competência administrativa vinculada a ser exercida pelo chefe de governo”, diz a decisão. A interpretação de Rosa Weber não amplia o enquadramento do art. 319 do Código Penal, o que afrontaria o princípio da legalidade.

A decisão reitera um princípio fundamental do Estado de Direito: ninguém está acima da lei. “O presidente da República também é súdito das leis e, situando-se no vértice da hierarquia administrativa, não pode se furtar ao dever tanto de extirpar do sistema jurídico aqueles atos infralegais que se põem em antítese com as leis da República quanto de repreender, no plano disciplinar, os agentes do executivo transgressores do ordenamento jurídico”, lê-se na decisão.

Não é comum um juiz indeferir pedido de arquivamento do Ministério Público, que é o titular da ação penal. Afinal, não faz sentido dar prosseguimento a uma investigação em que, desde o início, a promotoria está convencida da impossibilidade da ocorrência de crime naquelas circunstâncias.

No caso, Rosa Weber fundamentou o indeferimento do pedido na jurisprudência do STF, que admite a apreciação do mérito do pedido de arquivamento em duas situações: “quando fundado na atipicidade penal da conduta ou lastreado na extinção da punibilidade do agente, hipóteses nas quais se operam os efeitos da coisa julgada material”. São casos em que há um juízo sobre o mérito da controvérsia criminal – e isso cabe ao magistrado decidir.

Ao analisar o mérito do pedido (no caso, indeferindo o arquivamento), a ministra Weber joga luzes sobre outro importante aspecto do Estado Democrático de Direito: toda função pública está sujeita a controle, também as atividades do Ministério Público. O procurador-geral da República não é “o único juiz de suas próprias postulações”, o que, se assim o fosse, significaria “nítida inversão, desautorizada pela Carta da República, do arquétipo constitucional de divisão funcional do Poder”.

Ao apresentar, com rigor técnico, as exigências relativas ao exercício do poder no regime republicano, Rosa Weber desvela também a incompreensível submissão das teses jurídicas de Augusto Aras aos interesses do Palácio do Planalto. A Constituição pode e deve ser mais efetiva do que postula o procurador-geral da República. O chefe do Executivo federal não está autorizado à inércia perante a comunicação de crimes no seu governo.

Antes tarde do que nunca

O Estado de S. Paulo

Com leilão da Codesa, governo conclui primeira privatização em três anos e três meses; ritmo precisa acelerar

O governo que prometia arrecadar R$ 1 trilhão em privatizações na campanha eleitoral levou três anos e três meses, mas finalmente conseguiu vender sua primeira estatal. Após uma longa disputa em leilão, a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa) foi arrematada pelo fundo de investimento Shelf 199, gerido pela Quadra Capital. Foi a primeira vez que o modelo que associa a concessão dos serviços públicos à venda da estatal foi testado no setor portuário. O fundo deverá desembolsar R$ 106 milhões em bônus de outorga, valor que se soma aos R$ 326 milhões que serão desembolsados na aquisição das ações da empresa pública federal.

O consórcio vencedor será responsável por administrar os Portos de Vitória, com um portfólio de cargas já consolidado e uma posição favorável de acessos rodoviário e ferroviário, e Barra do Riacho, especializado no embarque de celulose. Mais importante do que a arrecadação gerada pela operação são os investimentos que a empresa se comprometeu a realizar. Serão R$ 855 milhões nos próximos 35 anos. Além disso, 7,5% de suas receitas anuais dos portos deverão ser pagas à União ao longo do contrato.

São mais do que conhecidas as dificuldades econômicas e financeiras do País. O Orçamento deste ano reservou apenas R$ 42,3 bilhões para investimentos públicos federais, o menor volume da história, e a maior parte – R$ 8,7 bilhões, quase 21% do total – ficará com o Ministério da Defesa. Já o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) terá somente R$ 6,2 bilhões para manter todas as rodovias federais do País, um terço do que seria necessário, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT).

É por tudo isso que a privatização da Codesa pode se tornar um marco para o setor portuário e deve ser celebrada. Além do Espírito Santo, há outras seis companhias docas estatais – Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo – na administração de 17 portos em todo o País. De acordo com levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), juntas elas deixaram de investir R$ 17,5 bilhões entre 2010 e 2021. O caminho para impedir a completa deterioração dessa infraestrutura passa, necessariamente, por parcerias com o setor privado, já que o custo de manutenção desses empreendimentos é muito elevado. Com recursos cada vez mais escassos, o Estado precisa concentrar sua atuação em áreas como saúde e educação.

Ainda neste ano, o governo pretende privatizar o Porto de Santos, o maior da América Latina, e os de São Sebastião e Itajaí. É evidentemente uma boa notícia, mas a demora em dar andamento a esses processos permanece como um motivo de preocupação. É melancólico que a primeira realização do governo na área de desestatizações tenha partido do Ministério da Infraestrutura, e não da pasta comandada pelo ministro Paulo Guedes. Tudo indica que a capitalização da Eletrobras será concluída neste ano, mas é bom lembrar que o saldo ainda é negativo: o governo Bolsonaro criou duas estatais e, até agora, só vendeu uma.

Em pré-campanha, Bolsonaro volta a pôr urnas em dúvida

Valor Econômico

A chapa estará assim unida em apoio a uma ditadura que não permitiu eleições como a que Bolsonaro vai disputar

A janela das trocas partidárias se fechou, o presidente Jair Bolsonaro se filiou a um partido, o PL, três anos depois de ter pertencido a um, 10 ministros saíram dos cargos para disputar as eleições, da mesma forma que o fazem 16 dos 26 governadores. Mas a campanha eleitoral se abre em ambiente politicamente carregado - Bolsonaro voltou a atacar as urnas eletrônicas e o Supremo Tribunal Federal.

Os sentidos dos discursos de Bolsonaro vêm aos trancos e barrancos, é difícil discernir a lógica e a sequência dos raciocínios, se é que existe sequência e lógica. Entre uma motociata e uma cavalgada em Parnamirim (RN), ele disse que “o povo armado jamais será escravizado”, para emendar a seguir que “podem ter a certeza que, por ocasião das eleições de 2022, os votos serão contados no Brasil”. Não há dúvida de que os votos serão contados, manual ou eletronicamente - sua preferência é o manual - enquanto a primeira frase, se tem nexo com a seguinte é a de que o presidente e seus adeptos não aceitarão o resultado. A proximidade sintática de armas e urnas não sugere apostas na democracia.

“Não serão dois ou três que decidirão como esses votos serão contados”, continuou Bolsonaro, falseando os fatos, como faz com frequência. A Câmara votou por maioria contra o voto impresso, mas Bolsonaro prefere fulanizar seus desafetos para facilitar sua tarefa de propaganda - no caso, contra os ministros do STF Luís Roberto Barroso, ex-presidente do TSE, Edson Fachin, atual presidente da instituição encarregada de supervisionar as eleições, e Alexandre de Moraes, próximo a ocupar o cargo. Para dar tom messiânico à sua cruzada pela reeleição, Bolsonaro a qualifica como uma disputa entre “o bem e o mal”.

Bolsonaro retoma o caminho interrompido em setembro, quando patrocinou manifestação golpista contra o Supremo e as instituições, que lhe renderam citações em inquéritos por atos contra a democracia e divulgação de fake news. Após se assegurar, abraçado ao Centrão, de que não sofrerá impeachment, e apreciar melhoria de sua popularidade e de suas chances eleitorais, o presidente volta a colocar as eleições sob suspeição e insinuar que não acatará o desfecho das urnas, por definição falseados. Ele já havia acusado ministros do STF de agirem para que Lula volte a ocupar a Presidência.

O STF entrou de novo na mira do Planalto e não é outro arroubo do presidente, como comprovou ontem a defesa do deputado Daniel Silveira (União Brasil-RJ), que se escondeu na Câmara na terça-feira para não cumprir determinação judicial do ministro Alexandre de Moraes de voltar a usar tornozeleira eletrônica. Silveira foi preso e é réu em processo criminal por atentar contra a democracia e pregar a volta da ditadura. A prisão foi autorizada pela Câmara. Truculento, ele debocha de Moraes, e propõe que o ministro seja “impichado e preso”. Ontem, em cerimônia no Planalto, Bolsonaro disse que não se pode aceitar “passivamente” o que está acontecendo com o deputado, pondo em dúvida até se ele pode ser preso - após decisão unânime do STF referendada pelo Legislativo.

Silveira participou da posse dos novos ministros, na qual o presidente elogiou o golpe militar de 31 de março de 1964. Em ordem do dia na terça-feira sobre a data, o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, que deixa o cargo como possível vice na chapa de Bolsonaro, mencionou que o país seria uma “republiqueta” sem as obras do governo militar e que então já existia a luta do “bem contra o mal”. A chapa estará assim unida em apoio a uma ditadura que não permitiu eleições como a que Bolsonaro vai disputar.

Além disso, por palavras, atos e decretos, Bolsonaro faz apelo às armas para que o “povo” defenda sua “liberdade”, isto é, o direito de escolher Bolsonaro como presidente e de se opor, com o uso da força, se isso não acontecer. Enquanto facilita a disseminação de armas para todos, inclusive milícias, que já tinham trânsito quase livre para obtê-las, o presidente, em suas pregações, estimula um clima de violência e tumulto que não se via há décadas em eleições presidenciais.

Ontem ainda o presidente arrumou tempo para ofender os ministros do STF. “Se não tem ideias, cala a boca. Bota a tua toga e fica aí”. A Justiça, se o presidente insistir nesta escalada, terá de enquadrá-lo, em decisões politicamente delicadas, em várias categorias de crimes eleitorais. São desafios com os quais Bolsonaro prepara, conta e dos quais pode tirar partido. O TSE terá mais trabalho este ano do que nunca.

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