sábado, 2 de abril de 2022

Ricardo Henriques: Transparência e equidade nos gastos

O Globo

O contexto torna as regras mais facilmente conversíveis em investimentos pouco ou nada equitativos e, pior, cooptados por interesses escusos

Como nos ensinou Douglas North, e o confirmou Daren Acemoglu falando sobre o desenvolvimento das nações, o aparato institucional, o arcabouço normativo e a aderência dos órgãos a eles são fatores tão importantes para o financiamento educacional quanto o são o volume, a distribuição e a natureza dos investimentos.

 Enquanto os últimos referem-se à dimensão quantitativa dos gastos, os primeiros dizem respeito à sua qualidade. O Brasil tem desafios a superar nas duas dimensões.

O noticiário recente sobre práticas nada republicanas de distribuição de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) do Ministério da Educação (MEC) atravessa esse debate. As suspeitas de improbidade jogam luz sobre a necessidade de mais transparência e critérios técnicos na execução de políticas educacionais.

A maior fonte de financiamento da Educação, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais do Magistério (Fundeb), foi modificada em 2020, com aumento do aporte da União ao Fundo, passando de 10% do total arrecadado por estados e municípios para 23% até 2026.

Além disso, o novo desenho incorporou mudanças significativas que aumentam a equidade e incentivam o retorno sobre os investimentos, constituindo, assim, importante contribuição para melhorar a qualidade deles.

Contudo, o Fundeb representa cerca de 60% de todo o gasto público com educação no Brasil. Há, pois, uma série de receitas e despesas “fora do Fundeb”. Em 2019, a União renunciou a R$ 8,8 bilhões com apenas dois instrumentos ligados à educação: R$ 4,2 bilhões com deduções educacionais no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e R$ 4,8 bilhões com isenções às entidades sem fins lucrativos (Cebas) que, por lei, devem conceder bolsas a alunos vulneráveis em número igual ao de matrículas pagas nos cursos que oferecem.

O Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (Cmap) concluiu que, em 2019, o MEC não dispunha de um sistema para registrar as bolsas concedidas pelas entidades com Cebas, uma exigência legal para que obtenham a isenção tributária. Além disso, o MEC não possuía mecanismos para avaliar os resultados da concessão do Cebas: acesso, conclusão e nível de proficiência dos bolsistas.

Em suma, o Brasil não sabe quanto dos R$ 4,8 bilhões que a União deixa de arrecadar (e, em parte, de repassar a estados e municípios) contribui de fato para o acesso e o aprendizado de estudantes atendidos por essas entidades.

Em outro relatório do Cmap, foi indicada a necessidade de aprimorarmos as regras do Programa Nacional de Alimentação Escolar, porque ele é “levemente regressivo” — transfere proporcionalmente mais recursos para entes federados mais ricos. Há também melhorias a serem feitas nas demais transferências obrigatórias do MEC, como o salário educação e o programa de apoio ao transporte escolar.

Por que tornar essas regras mais equitativas não é uma prioridade nacional?

No caso das deduções do IRPF, dados mostram que o mecanismo beneficia majoritariamente os mais ricos. Segundo o Ministério da Economia, em 2019, 79% das deduções em educação no IRPF beneficiavam as famílias pertencentes aos 20% mais ricos do país e quase metade das deduções se concentrou na Região Sudeste.

Se nas transferências obrigatórias há fórmulas não equitativas e lacunas de implementação que impedem conhecer seus produtos e menos ainda seus resultados, no caso das discricionárias o regramento é ainda mais frouxo. Não à toa, as suspeitas de apropriação do Orçamento por um “gabinete paralelo” no MEC estão associadas às transferências discricionárias do FNDE.

O contexto torna as regras mais facilmente conversíveis em investimentos pouco ou nada equitativos e, pior, cooptados por interesses escusos, mormente quando a liderança política fragiliza as regras e afasta do processo a burocracia tecnicamente qualificada e politicamente independente.

Dados os nossos enormes desafios educacionais e níveis de desigualdade, precisamos assegurar que as instituições e as regras para a alocação dos recursos públicos beneficiem prioritariamente os estudantes, as escolas e as regiões mais pobres do país, sob pena de, mesmo aumentando os gastos, não conseguirmos reduzir a distância que separa os mais vulneráveis dos privilegiados. Isso é o que se chama equidade.

 

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